quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

A Poesia - Rafael Gancz




A poesia fala demais. Tem a língua maior que a boca. E só não dá com ela nos dentes porque não tem mais dentes. A poesia é velha, caquética, senil. Do jeito que é dada a devaneios, a poesia ficaria melhor internada num asilo. De camisola, chinela e fraldão. Recebendo esporádicas visitas.
    A minha, não.
A poesia é falsa. Uma megera magra, fingida, elitista. Que vive rodeada de rima ricas. A poesia dá muito palpite.
    O amor começou.
    O amor permanece.
    O amor acabou.

    Só tem um problema: ninguém perguntou.

    A poesia ilude, enrola, não fala na cara. É uma esposa infeliz.
Quer romper, mas não tem coragem de dizer. A poesia é medrosa. Aponta para um lado e sai correndo para o outro.
       É um disfarce. Diz, à vontade, todo tipo de bobagem.
Qualquer coisa, foi o eu-lírico.
    A poesia é um cisco. Incomoda só de olhar. TOda torda, toda turve, toda turra. A poesia é burra. Não consegue completar nem uma linha. É deficiente, capenga, carente.
   A poesia ignora as margens da página como um aleijado ignora as margens do corpo.
   A poesia é um vaso empoeirado. Grego ou chinês. Que só combina com a decoração na forma de cacos espalhados pelo chão.
   falta assepsia na poesia. Falta esterelizar a poesia. Passar álcool, desinfetar. A poesia é nojenta, é rude, um arroto. Vem de dentro, vem das vísceras. É excretada por meio de perdigotos declamados.
    A poesia contamina.
    O rigor, a métrica, a sílaba. Feita na medida para aborrecer.
 A poesia é uma prece, um pranto. Uma pinga barata que embriaga e faz de todos um poeta.

      Uma, duas, três doses.
      E a poesia derrama.
      E a poesia transborda.
      E a poesia escorre.
      Cada verso, uma talagada.


     A poesia é um porre.

sábado, 11 de dezembro de 2010

"O sonho é a pequena porta escondida no mais profundo e recolhido recesso do santuário da alma, que se abre para a noite cósmica primeva, que era alma muito antes que sequer existisse um ego consciente, e que será alma muito além do que o ego consciente jamais poderá alcançar." C.G. Jung (in Woodman, 1999, p. 226).

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Metáfora Gilberto Gil

Uma lata existe para conter algo
Mas quando o poeta diz: "Lata"
Pode estar querendo dizer o incontível
Uma meta existe para ser um alvo
Mas quando o poeta diz: "Meta"
Pode estar querendo dizer o inatingível
Por isso, não se meta a exigir do poeta
Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudonada cabe
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha caber
O incabível
Deixe a meta do poeta, não discuta
Deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora

domingo, 14 de novembro de 2010

Traduzir-se - Ferreira Gullar

Traduzir-se
Ferreira Gullar

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

 Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?

Alma por Hillman

"...o logos da alma, isto é, seu verdadeiro discurso será num estilo imagético, um relato ... que é totalmente metafórico... Aqui, a metáfora serve a uma função psicológica: torna-se um instrumento de cultivo da alma em lugar de mera figura de ‘linguagem’... Alma-como-metáfora também descreve a forma como a alma atua. Ela atua como metáfora, transpondo sentidos e liberando significados interiores enterrados... A perspectiva escurece como uma luz mais profunda. Mas esta perspectiva metafórica também mata: ela ocasiona a morte do realismo ingênuo, do naturalismo e da compreensão literal... O método metafórico não fala por afirmações categóricas, nem explica por contrastes claros: ele entrega todas as coisas às suas sombras... assim, o método metafórico da alma é evasivo, alusivo, ilusório.’. (Hillman in Psicologia Arquetípica, 1988, p. 47/48).