Melancholia, o novo filme do diretor dinamarquês Lars Von Trier, marca uma fase pós-depressão que começou a ser elaborada em seu filme anterior, Anticristo. Em Anticristo, além de imagens cruas e dolorosas referentes à perda de um filho e a dor sufocante da mãe, não há redenção, apenas a morte simbólica, isto é, a morte do ego ou a morte concreta. O tema da morte também permeia Melancholia, mas a redenção em relação à angústia da morte é a própria aceitação da fragilidade e finitude humanas representada pela personagem central, Justine.
O filme começa com Justine e Michael indo para a festa de seu casamento e a Limusine atolando. Nessa primera parte do filme, Justine parece feliz, mas à medida que a festa avança, Justine vai deprimindo. O catalisador para a manifestação dessa depressão é uma fala de sua mãe em público contra a instituição do casamento e rituais. Daí para frente, ela vai descendo, descendo e tendo reações bizarras como tomar banho de banheira durante a festa, falar a verdade para seu chefe invasivo e transar com um estranho. Todas, atitudes de alguém para quem a vida não faz sentido e, menos ainda, as regras sociais para uma persona adequada. A descida ao inconsciente pode diluir a aquilo que entendemos coletivamente por normalidade. Por outro lado, há nessa descida a possibilidade de se trazer algo precioso à tona: uma nova consciência de si e da vida ( e da morte). Aquilo que assombra, rouba energia, é o que também precisa vir à luz da consciência.
A tensão na festa de casamento está entre Justine, a própria encarnação da melancolia e as expectativas sociais e coletivas adaptativas representadas por alguns personagens. Um dos ícones desse status quo coletivo é o cunhado de Justine: rico, racional e que cobra e se irrita com as atitudes de retirada de Justine da festa que ele bancara. Em um dado momento, ele exige que ela se sinta feliz, pois teria de valer a pena todo dinheiro que investira. O outro é o chefe de Justine que a persegue pela festa atrás de um slogan. O outro é o oragnizador da festa, que fica envergonhado e irritado com as atitudes de retirada de Justine durante a festa. Esses personagens representam o masculino prático, eficiente, que se irrita e se envergonha de um feminino lento e introvertido. É comum a depressão levantar medo, irritação e afastamento das pessoas ao redor. Em nossa sociedade materialista é mais fácil empatizar com a dor física do que com a psíquica. Justine pede ao pai para ficar após a festa, mas esse não a entende, não empatiza. Sua mãe é amarga e cética quanto à alegria. Temos nessa dupla parental a negação ( pai) e o excesso de realismo e amargura na mãe, opostos que" geram" melancolia. Talvez seja na melancolia que resida a possibilidade de reflexão e de busca por um novo sentido desses opostos.
A irmã de Justine, Clare, forma com ela uma outra oposição complementar: enquanto Justine representa a melancolia, Clare representa a obssessividade e o controle contra a angústia da morte. A festa de casamento termina com o noivo indo embora. Justine, como Perséfone, foi raptada por Hades e o único matrimônio possível a ela é com o inconsciente. As núpcias com a morte simbólica são tão imperiosas, a ponto de impedi-la de ter uma relação real. Sua irmã comporta- se na primeira parte do filme como Deméter: tenta resgatá-la do Hades a qualquer custo e, possivelmente, ter a irmã para "salvar" talvez esteja a serviço de abafar seu medo de deprimir e de morrer.
Após a festa de casamento, Justine piora e mal consegue se levantar para comer ou tomar banho. Recebe a ajuda de Clare e a crítica de seu marido, que a acha péssima influência para seu filho. Justine e o sobrinho combinam construir uma caverna. Clare é a representação da ansiedade contra a depressão, seu marido, a racionalidade, controle e assepsia emocional e a criança, a possibilidade de imaginação e alienação nesse cenário tenso à espera do planeta Melancholia que deverá colidir contra a Terra, gerando o fim do mundo.
Clare está apavorada com a possibilidade do fim. Seu marido tenta controlar através de estudo e tecnologia. Enquanto na primeira parte do filme é Justine que quase colapsa, na segunda parte é a vez de Clare. Justine apresenta- se nesse momento do filme com um ar de serenidade e contemplação diante da angústia de morte da irmã e oferece possibilidades criativas: brindar com vinho e construir uma cabana imaginária para aguardar o fim. Enquanto isso, o marido de Clare desaparece e é encontrado morto nos estábulos junto aos cavalos agitados.Clare corre desesperada com o filho nos braços para fugir da chegada de Melancholia. Essa conjunção de cenas: marido morto, Clare correndo e Justine sentada, observando-a, constela a chegada da depressão. O masculino sucumbe, o ego ameaçado quer correr e a depressão nos observa serenamente, pois sabe que não há nada a ser feito a não ser observar e aguadar o próximo passo.
Simbolicamente, é através da depressão e na entrega do ego ao chamado da descida que poderá haver a posssibilidade de nascimeno de uma nova postura diante da vida e da morte. Justine representa bem essa postura e mostra resiliência para aguardar a chegada de Melancholia. O desespero e o controle representados respectivamente por Clare e seu marido levam ao vazio existencial e não criativo. No mundo atual, observamos uma busca por controle e uma desenfreada obsessão em não parar. A questão é que, queiramos ou não, a morte literal chegará, assim como, crises e mudanças. A simbologia da passagem do planeta Melancholia pela terra e o fim do mundo pode ser associada tanto à chegada de uma depressão que pode ser sentida como fim do mundo interno, dada à falta de sentido que esse estado traz, quanto a uma lucidez sobre a vida e a morte. A criança, no filme, é o elo com a imaginação. É ela que impulsiona a construção da cabana mágica para aguardar a passagem de Melancholia. Isso metaforicamente significa que é através do arquetipo da criança que há a possibilidade de criação e entrega do ego ao inevitável. Assim como é através da capacidade de imaginar que o ego pode suportar e elaborar um terceiro caminho para conflitos, dilemas e dúvidas. A cabana é esse tertium non datur: nem o brinde proposto por Justine, nem a necessidade obssessiva de fuga de Clare, apenas um espaço intermediário e lúdico para aguardar o inevitável fim. A explosão da última cena pode ser associada simbolicamente ao fim de uma consciência, de um modo de viver, de uma visão. O que virá após isso é desafio criativo para o ego no diálogo com o inconsciente.
Há duas cenas do filme que valem ser destacadas: a primeira é a de Justine batendo no cavalo que não anda. Essa cena representa bem o ego sentindo- se ameaçado pela " parada, descida" e que quer bater, despertar a libido ou energia vital ( cavalos) à força. É comum em uma depressão que o ego se frustre com a parada e o silêncio da alma e tente se debater, mas a libido tem o seu fluxo e nada a desperta à força. A outra cena é o oposto dessa: Justine nua, em cima de uma pedra, contemplando a lua. A atitude contemplativa e a consciência lunar são duas posturas femininas de entrega ao inconsciente pouco valorizadas no mundo atual que vive para fora, para a ação e, portanto, para uma consciência mais solar. Essa luta entre masculino e feminino, intermamente falando, é criativa desde que um dos lados não assuma o poder. O diálogo é o que traz a possibilidade do novo, do terceiro não dado (tertium non datur). Quando conjugados, a coniunctio ou casamento sagrado entre opostos da alquimia pode se estabelecer e gerar um filho simbólico que poderá ser uma nova consciência, uma nova postura. No filme, os homens saem de cena e "sobram" as mulheres para aguardar a passagem do planeta Melancholia. O noivo de Justine vai embora no dia da festa, como já dito, Justine não consegue casar- se pois está, literalmente, raptada por Hades e o marido de Clare morre (ou se suicida ? ). Simbolicamente, a razão pura ou defensiva não "sobrevive" a essa descida porque a descida dilui nossas compreensões mais conscientes e sistemáticas sobre a existência.
Da mesma forma que em seu filme anterior Anticristo, Lars faz uso das cores, das paisagens e da fotografia do filme como um personagem a parte. Essas imagens acinzentadas, azuladas, esbranquiçadas compoem paisagens da alma em seu estado mais natural: no vale, na descida, distante do sol e da superfície. O cinza, o esbranquiçado e o azul são cores correspondentes a estados alquímicos associados à depressão e à melancolia. Correspondem a mistura da nigredo (escuridão e prima mater) com a albedo (claridade) e no senso comum na língua inglesa estar blue significa estar triste, pra baixo. Em uma passagem, Justine aparece presa vestida de noiva e presa a raízes e ela tenta se movimentar em vão. Em outra, Clare está correndo com o filho no colo e os pés invertidos, também impedindo-a de correr. Essa sensação de aprisionamento, enraizamento e dificuldade de locomoção também está associada a humores mais melancolólicos, tristes e assim também à natureza da alma. A descida lentifica, afunda, rende o ego. O pé invertido pode estar associado ao ego querendo desafiar essa natureza e sendo dominado, domado e para isso a deformidade ou na linguagem de Hillmann o patologizar para que a alma se faça e para que façamos alma.
Por que para falar de melancolia Lars escolhe o casamento como símbolo disparador ? Pelo caminho mais literalizado poderíamos supor que o casamento pode gerar opressão e depressão ? Ou que o casamento como instituição é a morte da individualidade e põe em risco a individuação? De um ponto de vista mais simbólico, o casamento é a união de opostos e como toda oposição na psique gera tensão e é o símbolo da possibilidade de diálogo entre opostos. O trabalho anímico com essas tensões é árduo, já que a consciência tende a escolher um pólo em detrimento do outro. No filme, a "solução" para isso é a conjunção de melancolia (Justine) com obssessividade (Clare) e a espera do fim, do vazio. Há também alusões a solidão. Justine, no dia que "deveria" trazer-lhe felicidade, comunhão com outros se isola em sua agonia existencial. Tomar banho de banheiro pode simbolizar a solutio, a dissolução (e solução) para formas e expectativas fixas, tão bem denunciadas pela fala cortante de sua mãe contra as instituições humanas. A solidão, o isolamento impostos por um estado mais rebaixado de alma também faz parte dessa natureza e desse trabalho com a alma. Artistas e pensadores criam na solidão e no silêncio. Jung isolou-se por anos e entregou-se às imagens que resultaram no Red Book. Assim, o que virá desse vazio é tarefa de fazer alma e o mistério existencial no nosso universo e cosmologia particular.
Nenhum comentário:
Postar um comentário