domingo, 18 de setembro de 2011

O CORPO ARQUETÍPICO - NOVOS OLHARES - Isabel F. R. Labriola

III Encontro dos Amigos da psicologia Arquetípica
São Francisco Xavier, 2 a 4 de julho de 2004


“Novos olhares” poderia ser uma boa metáfora para a prática da Psicologia Arquetípica. É o que temos aprendido e exercitado entre nós e nos nossos encontros: olhar de novo, olhar o novo ou olhar de um jeito novo.

O tema atual – O Corpo Arquetípico – me parece desafiar ainda mais esses olhares. Diante das questões: Qual é o corpo da psique? Onde e de que forma a psique ganha corpo? ; somos desafiados a enxergar o visível e o invisível do psicológico ou, os fluídos da psique tomando corpo.

Evitando uma ótica unicista, - inclusive da nossa cultura psicológica - e treinando novos olhares, ficamos inicialmente no escuro, na cegueira do desconhecido, tateando entre sensações. Ficamos na experiência da névoa, do lusco-fusco, do movimento das sombras, da imprecisão. E então, imersos na solidão do nosso laboratório de imagens particular, ficamos entregues à imaginação.

Dá medo esse abandono provisório do controle, por isso nossos vícios de funcionamento nos impelem às visões acomodativas ou ao uso dos nossos óculos teóricos habituais. Ou então, a lançar mão de lunetas que ampliem nossa visão para um foco mais longe: para buscar amplificações mitológicas e culturais que nos oriente; ou a usar microscópios que aprofundem o foco para mais perto: buscar diferenciações, limites, proximidades, - autores, linhas teóricas, conceitos novos, mas, que tendem a nos circunscrever em territórios teóricos e unilaterais. De qualquer forma, cegos, míopes ou visionários, o tema do corpo da psique nos põe tateando imagens a partir das sensações do nosso próprio corpo psíquico. Ao menos, é assim que me sinto. Trouxe aqui, pois, as imprecisões das minhas sensibilidades imaginativas.

No escuro do meu laboratório, percebo, inicialmente, que o que dá corpo à psique é a sua própria sombra, ou, um reflexo enevoado de nós, nem sempre visível, mas paralelo. Há um hálito tangível que inscreve uma vontade de revelação. Há um desejo por imagens e formas, algo quer se encarnar, tornar-se corpo. Então, experimento que o que dá corpo à psique são as imagens da sua própria imaginação. A psique é um corpo de imagens.

Aprimorando um pouco mais esse olhar, ou alinhando-o a um olhar junguiano, me parece que a psique fica mais “encorpada” e bem apresentada quando se veste de imagens arquetípicas, quando “empresta” a indumentária e o corpo dos deuses originais para melhor aparecer no palco humano da vida. São os corpos-imagem dos deuses que nos mostram a psique e suas mensagens-sintomas. Assim, imaginando: são as dores do abandono, repetidas por Eco, as sinuosas tentações e as tarefas de Afrodite, as agudas reivindicações e as racionalizações de Athena ou os inspiradores caminhos e as provas iniciáticas de Hermes, que oferecem à psique um corpo: de pés alados, garganta gritante, músculos fatigados, nádegas e seios voluptuosos, cachos dourados, olhos brilhantes, cabeça ordenadora, mãos fortes etc, e que abrem nossos pulmões para as inspirações da vida, dando, simultaneamente, voz e sonoridade aos nossos lamentos e narrativas.

Olhando de novo, e por outro lado, me parece que a psique quer corpo, precisa de carne: de linfas, fluídos, hormônios, umidades, saliva, sangue, sêmem, tudo que dê às vísceras possibilidades de deslizamentos ou trânsito livre para a imaginação. Precisa da umidade e da temperatura de um corpo alquímico para as suas transformações “solve e coagula”. A alma quer e precisa de um corpo eviscerado e se alimenta prazerosamente das imagens desse corpo, da fisiologia vegetativa presente nas profundidades das nossas conexões celulares. Aí me parece estar a psique, ou a alma, imprimindo suas pulsões em metáforas, expressando desejos, limites e necessidades, buscando formas e significados para a vida e para a morte - construindo e destruindo corpos, imaginando destinos. Ela está nas dobras, nas secreções de um caldo alquímico que sintetiza possibilidades de vida e de morte: mais ou menos glicose para uma alma que está perdendo o oxigênio da vida; mais ou menos adrenalina porque um medo ou raiva assustou e desequilibrou uma ordem emocional; grandes quantidades de endorfina para dar prazer e felicidade ao abraço amoroso; salivações glandulares necessárias para ativar uma fome de afeto e compensar ausências; secreções lagrimais suficientes para desatar uma dor apertada e uma aflição danada; - todo um fluxo de substâncias armazenadas e liberadas conforme nosso sistema linfático de proteção e ataque à nossa homeostase psíquica.

E tudo pode virar veneno ou remédio da alma nessa fabricação de sínteses protéicas humanas. Aí está a alma assoprando significados em nós, provocando sensações e sentimentos-sintomas: dor, febre, suores frios, palpitações, vertigens, tristeza à toa, alegria boba, prazer arrepiante, riso espontâneo, medo súbito, humores e temores – tudo tiques ou nervos da alma, que vai eviscerando suas imagens em conexões mensageiras no metabolismo da nossa carne.

A psique precisa da intimidade das carnes e dos líquidos pra fermentar imagens e tornar-se corpo. Precisa de se olhar, de se refletir, de ser vista, de metaforizar e dialogar com suas metáforas. E isto é diferente de um olhar psicossomático, preocupado em circunscrever patologias. Penso na natural vulnerabilidade da alma, que aflita, provoca e precisa de coagulações sanguíneas. Penso que sua densidade pede membranas e cavidades para secretar seus mistérios, e artérias e veias para circular seus desejos. E penso na melancolia como seu estado natural, que condensa dores, resseca secreções e sonhos, destila sensações de vazio e de falta e também saliva realizações. São expressões da psique querendo encarnar seus significados, fazer vida e fazer morte.

Tenho procurado afinar minha sensibilidade e minha imaginação com o corpo psíquico dos meus pacientes, especialmente com aqueles que apresentam suas feridas literalizadas no corpo físico, e percebo que há um enredamento de imagens na matéria, sentimentos e sensações que ficaram aprisionadas e fascinadas em algum reservatório alquímico do corpo; algo estagnou na nigredo e detém um processo fisiológico imaginal que se repete em mortificações. Tento localizar esses automatismos viciados e acompanhar seus sistemas-imagens de medo e ansiedade, ou seus circuitos de raiva e fúria, ou ainda, suas oscilações melancólicas inscritas nas depressões de uma falta existencial. São humores da alma, temperamentos, alquimia de sangue, fleuma, bile. Toma corpo um desejo e uma urgência sensível da alma, algo forceja por nascer da carne e então percebo que um olho, que não o do corpo, espia.

Encontrar esse olho fantasmático, triksteriano, que libera imediatamente um jogo de imagens dramáticas e luminosas, me parece o maior desafio. Sinto que ás vezes isso atinge o ponto cego do meu olho de analista e me põe tateando na escuridão dos mistérios sobre um corpo tangível da psique. Um corpo de sombras, porque ainda mistério ou porque desejos e sintomas da sua natural patologia. Assim, no encontro com meus pacientes, ao tentar exercer um olhar para dentro, vejo que algo nesse dentro também me olha; algo olha através de nós, há algo que me espia, que me vê e que me enxerga. E sei que só posso encontrar alguma nitidez, acostumando minha córnea no crepúsculo, numa ordem rarefeita, lenta e cheia de surpresas que está também no estranho silêncio da matéria.

Então, me parece que para acionar as possibilidades da criatividade é necessário sintonizar com o silencio e com o desconhecido, tatear superfícies, ou saber brincar de esconde-esconde, - porque a matéria da alma pede sempre o olhar puro da criança que é capaz de imaginar e acreditar. E o sandplay me parece perfeito para essa alquimia.

O sandplay oferece em sua prática uma boa metáfora do trabalho alquímico. Em sua caixa de areia está em repouso a matéria prima a ser trabalhada e é possível experimentar a densidade, o silêncio e a vulnerabilidade da matéria a ser tocada e transformada pela inspiração momentânea da alma. Na experiência com meus pacientes percebo que há uma sensação inicial de vazio e apreensão que se transforma aos poucos em uma curiosidade criativa, e depois um desejo imaginativo vai tomando forma, criando cenas, rememorando histórias, evocando sentimentos. Ás vezes uma pequena sensação de aflição ao tocar a areia já é capaz de conectar medos granulados ao longo da vida e ás vezes um sentimento de alegria ao brincar já ativa solturas imediatas, dissolve resistências e reacende a capacidade de ser feliz. E então, sempre, um desejo de mãos e de dedos passa a comandar os olhos e a buscar imagens na areia que possam dar corpo à psique naquele momento. A construção de cenas e imagens na areia dá corpo à psique, fazendo ecoar as suas metáforas. Além disso, olhar a cena realizada e apreciar seu resultado ativam uma auto-reflexão empática, que é compartilhada pelo olhar empático do terapeuta, dando reconhecimento e fluidez aos movimentos e falas de um corpo psicológico singular.

Essa experiência alquímica ativa um laboratório de fazer psique que solicita naturalmente uma nova atitude do paciente e do terapeuta. Nessa direção, Francesco Donfrancesco, em seu livro “No Espelho da Psique”, nos lembra que no mito alquímico “o herói é devorado pelo dragão, o que significa que a imaginação é vitoriosa sobre ele; depois o herói abre caminho no ventre do dragão com uma lâmina e lentamente se liberta. Isto é, dentro do ventre se realiza uma atividade discriminatória; o nous exerce suas separações e distinções, seu discernimento, nas concretizações da physis, nas fantasias concretizadas. Isto é, a matéria que o dragão representa não é distante e inconsciente como nos outros mitos heróicos, ao contrário, é como que lentamente modelada interiormente, e nesse paciente reconhecimento, nesse dar forma diferenciada àquilo que se tinha apresentado como informe e indiferenciado consiste a obra do herói alquímico. A consciência, dizia Jung, exige discriminação, porque ela se funda na percepção das diferenças. Mas essa percepção pode ter a delicadeza dos dedos, a sensibilidade do ouvido, do olho e do gosto, pode apreciar sutilmente os valores, as cores e as imagens: essa é a consciência que Hillman considera genuinamente psicológica, isto é, adequada ao seu objeto, a psique, aquela que deve ser educada no training e exercitada em relação a todos os aspectos da análise. Uma consciência cujo modelo de estilo é justamente o herói alquímico.”(2000:44)

Experimentando isso na minha prática clínica, - e pensando que o que dá corpo à psique são as imagens da sua própria imaginação - estou certa que o sandplay se oferece como objeto e corpo à psique. Nessa alquimia do imaginar se inscrevem e se modelam novos sujeitos e novas cenas.
O sandplay tem ampliado generosamente minha metáfora de trabalho psicológico, mas penso que no encontro psicoterapêutico em geral, oferecemos aos nossos clientes um espaço livre e protegido para que a psique ganhe corpo. Acompanhamos a alquimia imaginal de suas metáforas, suas cenas coaguladas ou dissolvidas, seus ensaios de corpos em sonhos, seus olhares submetidos aos encantos e às feridas. Damos corpo à psique ao oferecer-lhe, através do nosso encontro, além de um ritual de tempo e espaço para a sua expressão, possibilidades de interlocução, discriminação e troca entre imagens e falas. Oferecemos à psique uma ossatura mítica para as suas imagens.

Cultivamos a alma com a empatia de nossos olhares, - novos olhares - e assim oferecemos corpo ao psicológico e à vontade da psique em revelar-se na matéria humana. Então nossas “palpitações” psicológicas são na verdade os movimentos naturais de um ritmo cardíaco ativado pelo encontro terapêutico. São inspirações da alma usando um metabolismo de troca transferencial e que só se tornam possíveis quando há cavidades abdominais livres e cuidadas para esse ritual e quando não tememos adentrar nas suas intimidades imaginais.


Isabel Labriola
São Paulo, junho de 2004

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