quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Por que Hillman ? Por que a Psicologia Arquetípica?


Edmea Ganem

“Aberta a ressignificações, refletiria que a Psicologia Arquetípica me descaptura de um determinismo linear, propondo a feitura de novos caminhos através do reolhar para as imagens. Poder não ficar encapsulada no passado mas revivenciar aquilo que não encontrou registro no momento acontecido”. 

Alquimia do segredo



Sylvia de Mello Baptista

Segredos são como gás tóxico, invisivelmente destrutivos. Entram pelas narinas, invadem brônquios, circulam pelas artérias, depositam-se em fundos, paredes, interstícios. Ali ficam, perigosamente silenciosos. Imóveis, mas ativos. Agentes e reagentes aos movimentos peristálticos. Quando não podem ser contidos, boca serrada, selada com fita adesiva, transparentes deixam-se vazar inadvertidamente pelos orifícios menos nobres, como flatos podres e fétidos, denunciando sua sobrevivência em território tão adverso, espaço diminuto. Não ocupam lugar. Qualquer canto os cabe. Depois de acomodados, aí sim crescem e se expandem, tomam e inundam, competem com líquidos e linfas. Reproduzem-se no escuro; apreciam o breu; aconchegam-se nas sombras. Nem sempre são bombásticos e estridentes. Às vezes, singelos, quase ínfimos, aguardam um olhar acurado, uma pequena atenção, um exame que se demore alguns segundos mais e lhes vislumbrem, lhes desvendem, lhes desembrulhem, lhes deem nome. De posse deste, atenção, começam as revoluções. Viram-se e reviram-se, apropriando-se de si, desejantes de ganhar a luz, de se fazerem visíveis, palpáveis, palatáveis agora que se sabem. Quando encontram, finalmente, seu ponto de fuga, saltam aos olhos, diluem-se, tornam-se aquosos, soluçam-se, escorrem, e só aí podem ser recolhidos, processados, metabolizados, decodificados, analisados, acolhidos, examinados, percebidos, sentidos, pensados, sofridos, sangrados, desmembrados, envasados, renomeados. Perigoso retorno eterno, depois de liquefeitos voltam a se evaporar. Dolorosa solutio d’alma. 

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

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                                                            Rosarium - Hermafroditus

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Reflexões Arquetípicas sobre Fins de Mundos: Metáforas para a Clínica e a Cultura


Isabel Ferreira da Rosa Labriola
05 de junho de 2015



O objetivo deste trabalho é refletir sobre imagens que carregam ideias, mitos e sensações sobre Fins de Mundos. Este tema, carregado de imaginações e emoções sobre a nossa finitude, ou morte, tende a invadir nossa mídia cultural e a nossa subjetividade sobre finais e sobre mundos, fertilizando e desafiando nossa clínica psicológica.

O Fim do Mundo é um dos grandes assuntos que viram notícia em variações de tempos, e ocupam a nossa mídia coletiva em fabulações escatológicas. Em dezembro de 2012, reapareceu preconizada pelo mito dos Maias e reacendeu reflexões e medos sobre a vulnerabilidade e sobre a falência trágica da nossa humanidade, submetida a desconhecidos mistérios, ao controle imponderável dos deuses, ou às catástrofes da natureza, que operam sobre os nossos destinos.

A psicologia junguiana, na sua perspectiva arquetípica, tem sido foco dos meus interesses, e, por isso, faço parte, como uma das coordenadoras, do Núcleo de Psicologia Arquetípica (Nuparq) da SBPA SP, que teve início em abril de 2009. O tema do Fim do Mundo surgiu nas experiências de estudo desse núcleo. Lá, em dezembro de 2012, permeabilizados pelo mito dos Maias, começamos a metaforizar ações grandiosas e desmedidas como reações paradoxais fins-de-mundo. Criamos metáforas, como faz a psique naturalmente para se relacionar com o desconhecido, tateando os paradoxos e as adversidades, ou os estranhos sentimentos surgidos diante do inexorável. Este trabalho teve origem em meio a reflexões daquele momento.

Desde então, o tema Fim-do-Mundo se estabeleceu como um provocador, ou como um fio mediador dos meus pensamentos, e tem servido como perspectiva para olhar as conexões tempo e espaço no campo psicológico. Tenho visto que essa ideia apocalíptica está presente em diversos padrões de consciências-mundos, especialmente naquelas que se sustentam numa cultura monoteísta, que tende a se manter em ideias e valores como lógicas únicas, resistindo a transformações, pelo temor de sua finitude. Refletir sobre as vulnerabilidades que se apresentam frente à ideia Fim-do-Mundo tem também me reaberto possibilidades para experimentar novas formas e ficções, outras possibilidades/mundos que estão sendo constantemente inventados pelos fluxos criativos da nossa psique, no consultório e no mundo.

Minhas reflexões já subsidiaram um texto apresentado no VIII Encontro de Estudos de Amigos da Psicologia Arquetípica, em São Francisco Xavier, em setembro de 2014[1]. Naquele encontro, focalizei minha atenção na mítica Maia, que apresenta uma compreensão sobre um tempo circular de fins e começos de mundos entre deuses e homens, e destaquei o valor dessa perspectiva mítica porque ela oferece metáforas psicológicas mais adequadas para a nossa experiência psíquica de vida e de morte.

Neste encontro, pretendo reafirmar esses mesmos argumentos, mas quero aprofundar um olhar para os processamentos psíquicos que ocorrem quando consciências-mundos sofrem a ameaça de morrer, ou precisam morrer para dar espaço para outras formas de coerências-mundos, para as trocas e ganhos entre mundos no campo psicológico e, ainda, para o que seria o reino da morte para a psique.

A ideia contida no mito Maia não era de fim do mundo, mas de fim de um mundo, de troca de consciência, de mudança na relação entre deuses e homens. Pontuava o aceno de um encerramento de um tempo, uma completude, para um novo início; diferente da cultura experimentada pelo nosso ego cristão cultivado nas exortações bíblicas no livro do Gênese e no livro do Apocalipse, onde há uma grande fantasia de “fim do mundo” (que já ocorreu uma vez, com a inundação e a arca salvadora de Noé). No catecismo do nosso mito, muitas são as imagens que nos remetem às condenações e julgamentos do Juízo Final, a danações do Inferno ou a sonhos de ressurreição no Paraíso, numa escatologia comum desde os primeiros séculos do cristianismo.

Em nosso caldo cultural, o fim, ou a morte, está carregado de imaginações nem sempre capazes de nutrir eficazmente nossas psiques, pois elas se mantêm subordinadas às defesas de proteção criadas pelo nosso ego, cristão ocidental, diante de ameaças trágicas, mantendo-nos prisioneiros de uma visão literal de fim.

E o que seria o fim? O último ponto numa história linear? A morte física e literal para o nosso ego ocidental? Ou o fim seria também o começo num ciclo circular? Num cosmo mitológico, o fim é também o começo, e o início já contém o fim. Nas circularidades da alma, morte e vida referem-se uma à outra. Nascimento, declínio e morte são constâncias e concomitâncias num tempo eterno. O mito Maia de fim do mundo se apoia nesse logos da psique, e fertiliza uma melhor compreensão sobre as conexões de tempo e espaço, sobre finitude, completude, inícios e mortes, criação e destruição de mundos.

É nessa direção que pretendo continuar uma perspectiva de olhar – diferenciando o que seriam metaforicamente “fins de mundos”, ou o fim-de-um-mundo, e que pode, ou não, virar o “ fim do mundo”.

A psicologia junguiana, especialmente em sua perspectiva arquetípica, afirma e reconhece a realidade da psique como primariamente metafórica e toda a experiência psicológica como parte de um processo de imaginação e de mitologização. E amplia o campo do trabalho psicológico para além da análise da subjetividade dos sujeitos em consultório particular, afirmando uma psique/alma a ser cultivada e experimentada no campo das ideias/imagens do mundo, num olhar junguiano de anima-mundi.      

Num passeio pela nossa história coletiva, podemos ver que já tivemos alguns fins de mundos - como o dos indígenas, por exemplo. Como diz o antropólogo Viveiros de Castro, “os índios são especialistas com o assunto do fim de mundo, porque viveram isso no sec. XVI e XVII. E até hoje, entre nós, os guaranis continuam especulando sobre o fim do mundo, um certo fim, de um certo mundo, com certo número de consequências”[2].

Para Viveiros, os povos nativos das Américas têm muito a nos ensinar sobre fins de mundo e sobre perdas de mundo – porque sofreram isso, seja por catástrofes biológicas ou por terminações históricas e, não obstante, estão aí, em mundos que não são mais deles. Como na história dos Maias, o fim do mundo indígena foi um começo de mundo branco e europeu, e eles, num exemplo de resistência e manutenção da sua cultura, mantêm-se em seus calendários sagrados, convivendo com os seus antepassados.

Em seus mitos – que são realidades criadas ao psicologizar, ao tentar dar significado e sustentação para os mistérios insondáveis entre vida e morte –, os índios, os Maias e tantos outros povos que já perderam mundos, ensinam-nos que vivemos em sobreposição de mundos, que carregamos mistérios vivos de mortes e de fins de mundo, e que as fabulações dos nossos mortos certamente são parte das nossas gavetas mais íntimas e fazem parte da nossa cosmologia particular. E que é carregando as ausências dos nossos mortos é que vamos oferecendo dignidade e sentido à nossa vida.

Com a perda dos seus mundos, os que já estão vivendo em outros mundos também nos contam que, na nossa realidade terrena e psicológica, existem muitos e outros tipos de mundos, outras formas de viver e de se caminhar por um mundo sem chamar de seu.

As atuais emigrações da África e do Haiti, ocasionadas por guerras, pestes e fome, também nos têm feito assistir a muita gente andando sem mundo, e os seus mundos ficando sem gente. Estão se esparramando por outros mundos, vão virar outras gentes, vão diversificar mundos, ampliar sincretismos culturais. Mas, antes, precisam encontrar outros tipos de mundo e de perspectivas, e estão, literal e psicologicamente, rodeando Hades em lotação de barcos clandestinos, que navegam entre mundos visíveis e invisíveis, em fronteiras e limiares numinosos, numa situação ontológica de quase-vida e quase-morte.

Assistimos e somos afetados por essas imagens, que também nos conduzem. Vivemos em circularidade, num grande cosmos psíquico, onde as fronteiras entre mundos – múltiplos, diversos, idealizados ou ameaçadores – são constantemente experimentadas como realidades em nossa psique, que deseja mundos, que busca realizações e completudes bem maiores do que o único e conhecido lar do eu.

Experimentamos psiquicamente que somos atravessados por outras complexidades/mundos, para além das fronteiras de barricadas de defesa ou proteção de um ego patriótico salutar, embora essa seja uma experiência evitada por ele, que, com uma visão monoteísta, tende a se fixar em padrões únicos e se nega a navegar pela multiplicidade arquetípica da psique. Ameaçado para além do que reconhece como suas próprias fronteiras, é difícil ao ego aceitar que há outras formas de viver e de se caminhar por um mundo sem chamar de seu.

A morte, entendida como contrária à vida, é a grande protagonista sombria e indesejada na ideia/imagem fim-do-mundo. Nela somos raptados, como na mítica dos Mistérios de Eleusis, ao invisível e desconhecido mundo de Hades. E, então, experimentamos, como Perséfone, uma ingenuidade em nós sendo abusada, nosso ego maculado por uma outra realidade – mundo da alma.

Em rapto, experimentamos sensações metaforicamente borderlines entre mundos. Nas fronteiras entre mundos, ou, em situações limítrofes, ficamos num corpo de consciência – mundo dado –, enquanto também experimentamos um corpo sutil, tangível, estranho, novo, invisível e real, que nos desorganiza, e também nos tem. Tateamos abismos, como Perséfone, cheirando o rapto para outro mundo, temendo o abandono ou a morte literal, em campo psicológico intermediário.

Aprendemos, desde Freud, que somos constantemente raptados, seduzidos ou acompanhados pelo desconhecido e invisível inconsciente, ou pela cultura de um mundo subterrâneo. Ficamos com a tendência a experimentar as situações paradoxais, ambíguas, confusas, e ainda desconhecidas, como ameaçadoras ou trágicas, e assemelhadas ao retorno de um reprimido inconsciente, a um reino do julgamento e da morte, das trevas, localizando lá - “o fim do mundo”.

Mas também aprendemos, desde Jung, que lá se encontra a nossa ontologia, os nossos significados mais íntimos e ancestrais, o lugar de uma criatividade almada, que pede refinamento e realização, o espaço psíquico de circulação de muitos deuses, variadas lógicas de vida e de morte, aqui e agora e em tempo eterno. Na verdade, “para os gregos homéricos, a psique era encontrada apenas no Hades. O mundo das trevas – não a vida – era o lugar da psique” (Berry, 2014, pag. 33). E a morte, essa desconhecida temível, é a nossa constante companheira, o verdadeiro lugar e lar da alma. Então compreendemos que a casa de Hades, ou da morte, é um reino psicológico agora, não um reino escatológico depois.

Nas nossas teorias psicológicas, aprendemos a separar e a transitar entre mundos: mundo de cima – da luz, da consciência – e mundo subterrâneo – das trevas, do inconsciente. E vivemos no equilíbrio dessas fronteiras e, em duas dimensões de mundo, ficamos no terreno da ambivalência, ou do ambíguo. Mas acontece que quando estamos na experiência de uma delas, então, estamos também com a outra (em concomitância, em paralelo, ou em simultaneidade). Uma é condição da outra, porque elas são padrões, construtos psíquicos – cada parte de uma constela a outra. Viram caminhos de acesso, de um lado mais consciente para o outro mais inconsciente, ou vice-versa. O interessante é que isso também pode conduzir minha consciência naturalmente para lugares desconhecidos, portanto mais profundos, e provocar o meu ego a ser mais imaginal, poroso, imaginativo, criativo.

Assim, vamos nos enredando, circulando entre tempos e espaços psíquicos, entre realidades de homens e de deuses. E criamos mundos de consciência, conforme padrões vividos na mítica das nossas experiências, e mantemos nossos argumentos e lógicas em significados e imagens que sustentam as verdades necessárias para a manutenção desses nossos mundos.  Apegamos-nos a eles e vivemos temendo que eles cheguem a um fim.

Temos, cada um, uma equação particular-mundo, que nos sustenta, que nos justifica, que nos mantém permeabilizados por nossos compromissos (neuróticos) entre mundos. E na conexão entre mundos, nossa realidade consciente mantém-se em complexos arranjos conforme a fertilidade gestada nas profundezas de um mundo desconhecido, inconsciente, ou mais abaixo. Nossa realidade-mundo, realidade-psique, é produto das germinações feitas lá, abaixo, enquanto processamento das percepções dos objetos do mundo de cima. Nossos sintomas possuem uma intencionalidade subterrânea e só chegam a um fim quando não mais sustentam o mundo da superfície. E só então nosso arranjo de compromisso neurótico fracassa. Rompe-se com um mundo que perdeu sua validade de sustentação psíquica e abre-se para um novo mundo de possibilidades, que já se insinuava.

Sair da contenção neurótica do sintoma como padrão único de funcionamento é uma experiência de fim-de-um-mundo e, conforme o nosso apego e estreitamento psíquico, pode ser experimentado, temido e evitado, como se fosse o “fim do mundo”. Por isso, precisamos ampliar nossa perspectiva para a multiplicidade-mundo da psique e sua diversificada cosmologia de deuses e padrões de funcionamento. E também confiar na sua natural dissociabilidade para contemplar as variadas possibilidades de saúde/doença, conforme a labilidade criativa de ajustes psíquicos, que pode flexibilizar e conter a expressão plural de lógicas particulares.
                     
Acontece que nosso arranjo neurótico é compromissado com o ego, tendenciosamente monoteísta, e sustenta mecanismos criados entre ele e o mundo subterrâneo, em alianças protetoras e defensivas, que inicialmente foram úteis e necessárias. E a quebra dessa ego-sintonia é também o fim de um mundo funcional, mesmo que um novo e mais enriquecedor mundo já esteja se criando.

Largar um vício, mudar um hábito, obter insights novos, aprender algo novo, deixar de histericar por amor, conseguir vencer o pânico do avião, conseguir pisar na areia ou na lama, são conquistas de novos mundos que implicam em perder o gozo mórbido de um conhecido e velho padrão de mundo. Uma mudança de consciência, uma transformação de atitudes, uma outra perspectiva, que implica no mergulho terapêutico ao mundo das trevas, para reencontrar outros caminhos de expressão da alma, que se encontrava enfeitiçada por um único e defensivo apego do ego.

Se não, vejamos: nossa prática psicoterapêutica, permeabilizada pelos nossos sistemas teóricos, tem se visto frente à necessidade de desfazer literalismos cultivados nas patologias ou dessaranjos de sentidos, que se apresentam na vida cotidiana dos nossos pacientes. E experimentamos, conforme Jung, que, ao desliteralizarmos protótipos diagnósticos, podemos enxergar os mecanismos imaginativos “como-se” por trás dos sintomas. Precisamos do exercício de metaforizar. Ao fazê-lo, podemos apreciar as equações impressas nos nossos mecanismos “como-se” esquizoides ou paranóides, em nossas áreas “como-se” de psicopatia ou de respostas histéricas; e observar que são criados, ou são ficções defensivas, em respostas de urgência para traumas vividos. E, então, podemos valorá-los com as suas significações, e talvez liberá-los dos seus efeitos possessivos emocionais.

Se nos voltarmos para a ontologia dos sofrimentos psíquicos, desde a psicanálise, podemos observar angústias iniciais de um ego sendo ameaçado, em situações de perigo, temendo seu aniquilamento e morte. Ele fica em desamparo, conforme sua história pessoal, diria Freud, e também conforme sua conexão com um plano arquetípico, de um inconsciente coletivo, diria Jung. Seja seguindo um desenvolvimento linear de um tempo histórico – localizando fixações ou regressões –, ou valorando os pontos de desequilíbrio nos raptos de novos significados num tempo eterno, alteramos ou somos alterados por forças outras, para além da nossa defendida integridade narcísica.

E, num intrincamento de ameaças (de dentro e de fora), criamos defesas que negam, idealizam, reprimem, inibem emoções, projetam no outro, fazem grandes cisões que alienam psicoticamente os significados, expulsam e destroem, adoecem-nos em bipolaridades, dramatizam disfuncionalmente a vida. Também ficamos deprimidos, entristecemos ou nos encapsulamos narcísicamente numa racionalidade descrente e alienada. Em esquemas de agitação paranoide, literalizamos o que seriam situações novas e de angústia e nos aferramos em sentidos únicos. E, com isso, perdemos também o humor, a leveza, o desejo e a possibilidade, ainda que inquietante, de se apropriar do novo que está imerso em outras estéticas, mais adequadas à nossa excentricidade particular. Nossa individualidade multifacetada é pouco saboreada ao temermos cair em experiências fragmentadas.

Vivemos tão ameaçados pela nossa condição humana mortal, que, muitas vezes, não nos apropriamos suficientemente das conquistas que fazemos quando o desequilíbrio nos visita em fatos da vida. Tendemos a valorizar um desenvolvimento medido só num tempo linear e, então, é mais fácil aceitarmos e assimilarmos, inclusive psicologicamente, nossas terminações históricas individuais, as perdas de mundos a serem superados: mundo da infância, mundo adolescente, mundo adulto – numa conquista hierárquica evolutiva. Quase não localizamos nossas mudanças de mundo num plano do tempo eterno. Mas nossos raptos para outras consciências são também saltos quânticos, pontos de virada, reinvenções importantes da vida.

Num passeio pela nossa psicologia particular, temos memórias altamente significativas dos nossos pontos de virada, de como éramos, ou quem éramos, de certos acontecimentos simbolicamente determinantes que nos fizeram mudar de ideia, de padrão de comportamento e de vida. De como chegamos à completude de uma lógica, de um relacionamento, de um casamento, com a gente mesmo ou com o outro, que nos fizeram romper formatos de vida, e nos obrigaram, por imperativo interno ou por perda da complementaridade de fora, a reinventar novas vidas, novos mundos. Que mundos de ilusões e de planos morreram, para que fosse possível a reinvenção da vida, ou para caber novas consciências-mundo?

Podemos observar a circularidade de progressão e retorno de um tempo eterno que acontece na nossa experiência, muitas vezes ficamos capturados na transitoriedade de um talvez, num gesto fora de tempo e lugar, num acaso inesperado, na morte repentina de alguém querido, numa doença, num encontro amoroso, em armadilhas do destino. Ficamos, sem nenhum controle, em tempo psicológico, numa liga entre tempo sagrado e temporal. Mas, de repente – presente dos deuses –, uma dádiva de novos significados nos alcança. E podemos, então, observar momentos precisos onde percebemos a completude de um padrão de funcionamento que já não sustenta nossas certezas e/ou a chama de um novo estilo de consciência que nos arrebata. Num ponto de virada, num ponto final de equilíbrio, viramos nosso mundo de cabeça para baixo. Da consciência-mundo solar para uma consciência mundo-lunar. E então, novos deuses e deusas podem nos visitar e nos fertilizar em frutíferas e múltiplas imagens psíquicas. Assim, temos podido apreciar como estamos sendo, tendo sido.

Precisamos sair das regiões fixas, bloqueadas e imóveis da psique. Para isso, redescobrir as imagens e ideias que contem e carregam os mitos de um Fim de Mundo para nós torna-se um exercício clínico necessário para dissolver complexos de energia que resistem ao transito de outras formas de coerência e cultura. Nessa perspectiva, os quadros de sofrimento psíquico, os estados melancólicos, a depressão, o pânico, os estados obsessivos, e outros, podem estar comunicando a pobreza cultural de uma psique presa num estreito e único mundo de consciência, que não pode morrer ou acabar.  Transitar entre múltiplas possibilidades de consciência implica na capacidade metafórica de saber-se na borda entre vários mundos, em experiências imaginativas borderlines.

O movimento das transformações e trânsitos pede o convívio imaginal com um corpo sutil de alma –aflita, ingênua, desamparada – porém capaz da experiência alquímica necessária ao campo psicológico, porque busca sua própria reflexão na sua própria interioridade e sofrimento. É necessário caminhar por uma luz imprecisa, estranha ao ego, num lugar atemporal, em espaço intermediário entre mundos, à deriva, contando com a imaginação para perceber os processos inconscientes atrás de uma nova significação funcional. Uma vivência de Perséfone no mundo das trevas, ou seja, a experiência real, embora ameaçadora, da morte das qualidades de um mundo para um outro mundo. Para um novo nascimento é necessário passar pelo eclipse da transição.

O fim de um mundo é o começo de outro. Então talvez possamos considerar a ameaça “fim do mundo” como um aceno para a nossa consciência coletiva e individual, que aponta para a necessidade de trocas ou de transformações mais profundas. Até porque, quer queiramos ou não, estamos sempre em consciências variáveis mais ainda nesses tempos virtuais de internet, que conectam vários mundos. Hermes, o deus mensageiro entre mundos, tem nos alcançado em nossa sofisticação computadorizada pós-moderna, levando-nos a caminhar por múltiplos mundos conectados no tempo, invadindo-nos com urgências transitórias e desafiando-nos a desconstruir estilos únicos, ultrapassados, em descompasso com as múltiplas e diversas culturas de mundo.

Como diz James Hillman, citando o poeta Auden (Hillman, 2015): “Somos vividos por poderes que fingimos compreender”. Deuses nos atingem, arquetipicamente nos enredam em complexos, provocam nosso ego a se relacionar ou a construir defesas, e então, em nossas aflições, nós sabemos que somos visitados por seus poderes.  

Considerando, então, como no mundo dos Maias, que medidas de tempo são também momentos de repouso, completude, finalizações e começos, que coincidem, e que a passagem do tempo consiste em chegadas, revezamentos e partidas das forças divinas entre nós, podemos nos perguntar em que tempo mítico sagrado estamos atualmente e até mesmo comemorar fins de mundos.
                                                                                    
Referencias Bibliográficas:

Berry, Patricia - O Corpo Sutil de Eco: Contribuições para uma Psicologia Arquetípica, tradução de Marla Anjos e Gustavo Barcellos – Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
Hillman, J. e Shamdasani, S. - Lamento dos Mortos – a Psicologia depois do Livro Vermelho de Jung, tradução de Isabel F. R. Labriola e Renata Quirino, Revisão de Gustavo Barcellos – Petrópolis, RJ: Vozes, 2015 (no prelo).
Viveiros de Castro, Eduardo - Filosofia, Antropologia e o Fim do Mundo – palestra em vídeo (http://vimeo.com/78892524)




[1] LABRIOLA, I. F. R. “Tirando um fim de mundo da gaveta”. IMPAR – Instituto Mantiqueira de Psicologia Arquetípica, 2014.
[2] Palestra em vídeo (vide referências).

Os abusos psíquicos, a inveja e a criatividade – o que a deusa Atena tem a nos ensinar

Sylvia Mello Silva Baptista
03.06.2015




Introdução

Alice Miller, filósofa, psicóloga e socióloga, traz em seu último livro, a Revolta do Corpo, exemplos tirados das biografias de grandes escritores e artistas do quanto as situações abusivas vividas pela criança ficam marcadas em seu corpo, e no caso, em suas produções. Os seus ensinamentos têm me inspirado a refletir e a buscar resgatar essas memórias e auxiliar a criança que há nos adultos que procuram a análise a se libertar do quarto mandamento (“Honrarás pai e mãe”), de uma hipocrisia intrínseca, da culpa. A partir da atividade clínica, tenho percebido, com mais nitidez, a perda da criatividade e o embotamento do sentimento, fatos também denunciados pela autora quando ressalta a existência de uma cultura do medo e do que ela chama de uma pedagogia negra.
Como estudiosa de Mitologia Grega, busquei nesta fonte paralelos onde o mito pudesse elucidar pontos e nos guiar em relação a esse tema. Encontrei em Atena e nos aspectos ligados à inveja, presentes nos mitologemas desta divindade, importantes reflexões. Como tenho feito ao longo de anos, busco aproximar a compreensão das expressões psíquicas com a sabedoria da mítica grega, através da leitura simbólica desse universo.
A lucidez em relação ao relato mítico, unida ao testemunho sincero e destemido do relato do paciente mostram uma potência fundamental na escuta analítica. A inveja, o medo e a criatividade constituem um campo de contradições e desafios. Do mesmo modo, o mito sempre revela, e igualmente traz possibilidades de imaginar, e com isso, criar novos caminhos.


Tragédia
Na tragédia Eumênides, de Ésquilo, após o julgamento de Orestes, ocorre algo de muito significativo que chamou minha atenção. Como sabemos, Orestes cometeu o crime do matricídio, matando Clitemnestra que, por sua vez, havia matado  Agamêmnon, mancomunada com o amante Egisto, primo e inimigo do rei de Micenas. É justo que se mencione que este casamento começou de forma violenta, com Agamêmnon assassinando Tântalo II, marido de Clitemnestra, e seu filho recém-nascido, para então fazê-la sua esposa. Na passagem da guerra de Troia, a rainha perde mais uma filha, Ifigênia, sacrificada pelo pai para obter de Ártemis - que o castigara pela morte de um cervo consagrado à deusa- a volta dos sopros dos ventos para que o exército se colocasse novamente a caminho do grande combate. Junito Brandão nos lembra que etimologicamente Clitemnestra significaria “a que se celebrizou por não se esquecer”. O destino embrenhado no nome se fez fato. A rainha se ressente dos dolos sofridos e trama a morte de Agamêmnon, apunhalando o pai de seus filhos assim que ele retorna à casa, findos os dez anos de guerra. Orestes chega para vingá-lo, envolvendo-se numa complexa rede de mortes.
Até então, Orestes havia crescido longe da mãe e das irmãs Electra e Crisótemis, em Cirra, na Fócida, na corte de Estrófio, este casado com Anaxíbia, irmã de Agamêmnon. O casal tinha apenas um filho, Pílades, que dele se tornou um amigo inseparável. Orestes foi protegido por Electra da ira do amante da mãe, Egisto, que teria morto o menino - como era de costume, para evitar uma futura vingança. E é com a irmã Electra, que também foi subjugada e sofreu privações e violências por parte do casal, que Orestes irá arquitetar e realizar o crime de matricídio, ordenado por Apolo.


Fúrias
Ésquilo inicia Eumênides com Orestes já tendo realizado o crime e sendo perseguido pelas Erínias - ou Fúrias, no latim. Apolo vem em seu socorro e o orienta a dirigir-se a Atenas, onde institui o primeiro júri e inaugura assim os julgamentos dos crimes realizados daquela data em diante. Entendamos inicialmente quem são as Fúrias e seu papel.
Em número de três, são criaturas nascidas do sangue de Urano vertido em Geia quando de sua castração pelo filho Crono, conforme nos conta Hesíodo em  Teogonia. São vingadoras do sangue consaguíneo derramado e perseguem o criminoso o enlouquecendo, até mesmo nos Ínferos. São descritas como seres femininos, com tochas nas mãos, às vezes alados, com cabelos em forma de serpente. Em Homero, eram descritas como uma única criatura, mas com um sentido coletivo, e à medida que o tempo correu e a complexidade de divindades foi aumentando, passaram a ser representadas com maior especificidade: Aleto seria a implacável, a incessante, a que persegue empunhando fachos acesos, sem interrupção, trazendo à situação de perturbação um caráter incansável; Tisífone, a que avalia e vinga o crime com seu açoite impiedoso, e nos dá a dimensão das consequências do ato; Megera, a que inveja, a que tem aversão pelo criminoso, grita-lhe no ouvido suas faltas sem parar (Brandão, 2000). A tríade parece evidenciar três aspectos de uma mesma pena que se caracteriza pela nada invejável situação de ser incansavelmente lembrado, aos berros, da falta cometida, de modo que a tocha da consciência arda infinitamente sem dar chance ao criminoso de se afastar do seu ato.
As divindades são filhas de Geia e é com as entranhas que respondem à agressão sentida. O sangue derramado não é apenas o sangue de um indivíduo, mas é de todo um coletivo, um guénos. São uma espécie de zeladoras do mais profundo inconsciente, ao mesmo tempo em que fustigam o criminoso com a necessária consciência de seu crime. Simbolizam, neste ato, o impulso vingador de caráter matriarcal, enraizado em um feminino primordial.


Atena e a inveja
Aracne
Mas uma questão surge daí: Por que Megera, ou a personificação da inveja, estaria entre essas criaturas? A figura em si da divindade é bastante instigante. Atena, que irá estabelecer um diálogo direto com as Erínias no julgamento de Orestes, teve embates marcantes com outras duas criaturas peçonhentas, uma delas com a cabeça igualmente ornada com serpentes, como geralmente é retratada Megera: Aracne e Medusa. Estas duas figuras míticas provocaram o sentimento invejoso na deusa.
Aracne foi transformada em aranha, após desafiar a deusa Atena a um concurso de tapeçaria. A deusa ainda tentou dissuadi-la da hybris, ou seja, da arrogância de querer comparar-se a uma divindade; fez-se surgir diante de Aracne disfarçada de anciã e tentou convencê-la a desistir da contenda. Mas a tecelã insistiu e assim, sem saber, selou seu destino. Decorou seu trabalho com cenas amorosas dos deuses, especialmente de Zeus, com um primor inigualável. Tal afronta foi demais para a filha do senhor do Olimpo, que destruiu o bordado de Aracne, tão ou mais belo que o seu. Teria a deusa ficado com inveja da mortal por sua capacidade criativa, sua habilidade em uma mesma função, seu talento em tecer (quase) equiparável ao da divina? Segundo Peter Walcot, em um livro todo dedicado ao estudo da inveja e sua relação com os gregos, afirma que estes acreditavam que os homens são naturalmente invejosos, como parte de seu caráter e disposição, e define o sentimento em contraste com o ciúme, como costuma ocorrer. Diz o autor que no ciúme teme-se perder o que se tem, enquanto que na inveja, sofre-se por ver o outro possuir o que se quer. Acrescenta que são os iguais ou pessoas que têm aproximadamente o mesmo status que se invejam umas às outras.  No entanto, é também possível observar a partir do século V a. C. a ideia de phthonos theon, ou a inveja dos deuses, presente nas obras de Ésquilo, Heródoto e Píndaro. Enquanto a imitação seria um sinal de admiração, a disputa seria a marca da inveja.
Atena é “filha do pai”, uma deusa representante do masculino e que traz como atributo a inteligência, a sabedoria, a capacidade para a ação adequada àquilo que a situação demanda. Walter Otto, quando a descreve destaca a sua proximidade com os varões, em quem pensa e a quem se associa. Mas essa ligação está longe de ser erótica. Aliás, esse é justamente um território onde Atena não transita. Como deusa virgem, o amor erótico não está no seu panorama. Faz-se parceira do masculino, mas para auxiliá-lo nas batalhas heroicas. Uma aproximação fraterna. Teria, portanto, Atena invejado em Aracne a liberdade da mortal em passear pelo campo das relações amorosas com tamanha desenvoltura?  Ao bordar os amores de Zeus, a mortal demonstrou capacidade em imaginar o deus supremo em laços inimagináveis para a deusa-filha-do-pai. Aracne discorreu sobre Eros; Atena fez uso do seu poder de divindade e afastou-se da cena, castigando a imprudente.
Ao ver-se confrontada com cenas amorosas de Zeus e outros imortais, faz o trabalho em pedaços e humilha de tal forma a mortal, que esta tenta matar-se. Atena a impede, transformando-a em aranha, e assim a aprisionando no fazer eterno de teias circulares, numa alusão à repetição infinita que retém o criativo e a faz permanecer atada ao impulso instintivo puramente.  Zeus enviou vários personagens ao Tártaro com castigos eternos quando da tentativa de onipotência daqueles mortais, deslembrados de sua condição efêmera. Atena parece ter-se arrogado o direito, como sua representante, a fazer o mesmo com Aracne, uma vez tendo sido atingida no seu ponto sensível.


Medusa
Outro episódio em que Atena se depara com um feminino que lhe provoca  uma reação de horror e castigo está na história de Medusa. Roberto Calasso descreve a cena que enfureceu a deusa, novamente tendo como pano de fundo o campo amoroso:
No pavimento do templo de Atena, Poseidon molhava com saliva marinha o corpo pérola de Medusa, branco na obscuridade. Atena estava sentada em frente, estátua na prisão, obrigada a ver aqueles dois corpos trêmulos enlaçando-se no silêncio do templo. Sentia horror pelo ultraje e, ao mesmo tempo, um penetrante mal-estar, por saber que Medusa se parecia tanto com ela. Então ergueu seu escudo para apagá-los, para afastar-se. Foi um gesto que nasceu do mais íntimo de Atena, como para Ártemis o gesto de armar o arco. Ao mesmo tempo que, mais uma vez, Atena se separava de tudo atrás de uma cortina de pele escamosa, os macios cabelos de Medusa, espalhados no chão, começaram a inchar e, nas pontas, já se podia reconhecer igual número de cabeças de serpente. (1990, p.157)
Podemos pensar nas serpentes na cabeça como simbolizando pensamentos venenosos. Esta deusa, que se comporta como um tipo pensamento extrovertido associado à intuição introvertida, tem no pensamento seu guia no mundo. Vale hipotetizar que o que seria de caráter venenoso para a deusa seria justamente aquilo que ela teria mais dificuldade, aquilo que lhe causaria mais aversão e desconforto, provocando uma reação imediata e terrível. É justamente o que ocorre no encontro com Aracne, e aqui, com Medusa.
Todos conhecem a sequência: Medusa amaldiçoada, a única Górgona mortal entre as três, transforma em pedra todo aquele que dirige seu olhar diretamente a ela. Trata-se de mais um castigo que aprisiona o castigado numa existência solitária e assustadora. Petrifica e paralisa: ações similares ao modo como a deusa se sentiu ao ver a cena de amor, para ela aversiva. Será preciso a intervenção do herói Perseu, ajudado por Atena, por Hermes e Apolo, para que se ponha fim à monstruosidade em que se transfigurou Medusa, tendo como consequência a libertação de Pégaso e Crisaor. Estas duas criaturas geradas por Poseidon, encontravam-se encerradas no corpo da mãe, reafirmando o mitologema do aprisionamento evidenciado neste mito.
A cabeça ornada de serpentes será incrustada no escudo de Atena, o mesmo com que afastou a cena amorosa do seu olhar. Agora, as serpentes de Medusa afastarão quem se aproximar em demasia com intenções agressivas. Seu escudo continua com a função de proteção, mas transformado pela experiência vivida. Se num primeiro momento a deusa transformou o que invejou em algo asqueroso que impunha um distanciamento, com a ação do herói ela se aproxima deste aspecto tenebroso e o integra. A deusa auxilia o herói; o herói auxilia a deusa.

Megera
Walter Otto, como já dito, caracteriza Atena como deusa da proximidade –em oposição a Ártemis e Apolo que são distantes em sua condição de flecheiros.  E também a que “nada sabe das ternas delícias do amor” (1978, p.46), como vimos acima. Além disso, ressalta a importância dos olhos da deusa, sempre citados como penetrantes, agudos, refulgentes, porta de seu espírito sagaz. Enquanto deusa da consciência, representada por uma coruja, “o mais astuto dos animais”, enxerga na escuridão. Tal consciência se faz inimiga da sombra. A proximidade com seus protegidos lhe favorece a ter intimidade suficiente para gerar no outro a reflexão. São aspectos que a avizinham também da Megera, no sentido de que ambas provocam, ou mais, instigam na pessoa uma lembrança, uma fala com a mente, sendo que Megera para acusar e Atena para alertar e fazer refletir. Megera se faz, assim, um aspecto sombrio da deusa. Ambas, de formas distintas, favorecem que a consciência se ilumine, saia da escuridão.
Vejamos: com Aracne, teve uma reação de fúria e punição; com Medusa, a mesma ira provocou uma pena, mas junto a isso, a orientação de como sair da situação petrificadora. Com Megera, algo mais criativo ocorrerá.

Eumêmides
O que se passa no diálogo de Atena com as Fúrias, nas Eumênides de Ésquilo, descortina, a meu ver, algo de um valor psíquico inestimável. O embate leva, não a um “extermínio do sentimento” ou do conteúdo mobilizado, mas sim a um realocamento. As Fúrias, rebatizadas Eumênides, passam a habitar o sopé da colina de Ares, o Areópago. Olhemos para o que significa a mudança de locus do conteúdo psíquico.
As criaturas, semelhantes às Górgonas e às Hárpias, são descritas como de aparência horrorosa, aspecto tenebroso e repelente, com um hálito insuportável, corrimentos pútridos vazando dos olhos e trajes inadequados. São todos aspectos de um primeiro contato que distanciam (em contraste com a proximidade causada por Atena): a má aparência, o odor, o olhar contaminado. 
Nascidas para o mal, coube-lhes em partilha
a treva deletéria do profundo Tártaro,
criaturas malditas por todos os homens
e pelos deuses que se reúnem no Olimpo. (2003, v.102-105, p.150)

O deus que primeiramente entrará num embate com as Fúrias na tragédia será Apolo, simbolizando o novo versus o velho, a justiça de caráter patriarcal apolínea versus a justiça matriarcal primordial, o julgador versus o vingador. As Erínias são inflexíveis e implacáveis contra quem tem sangue nas mãos. São protetoras dos mortos e cobram a dívida de sangue; são lentas no pensar e decididas no executar e não esquecem os crimes praticados. Apolo é igualmente inflexível na ação, mas de modo patriarcal e rápido, como suas flechas. É o deus solar que propõe o novo, enquanto as Erínias zelam pela tradição. Representam o pólo senex do arquétipo da punição ou do destino trágico.  Desejam evitar que divindades novas tenham que arcar com essa obrigação da vingança.  O grande temor de uma divindade é perder seu lugar de entidade venerada. Isto é literalmente o fim. Mesmo odiadas, estas temíveis entidades recebem honrarias.
Há que se lembrar que as Erínias são fruto do sangue de Urano vertido sobre a terra – Geia. Vingam, portanto, a repetição de sua origem. Nem mesmo os deuses as afastam de seu dever.
Atena, ao chegar ao local onde se encontrava Orestes, não reconhece as Fúrias, mas tampouco as julga. Caso possamos pensar na tríade como aspectos sombrios da energia arquetípica expressa na deusa, neste momento ela está inconsciente a isso. Na tragédia, segue-se uma linda exposição da persuasão e sabedoria da deusa em dirigir uma conversação. Sua primeira questão é trazer à tona o contexto do ocorrido. Em que circunstâncias, o crime? Orestes foi forçado ou tinha medo? Para a dinâmica matriarcal pouco importa a razão; o crime é per si passível de vingança. E esta deve recair sobre o criminoso. Mas se algo acontecer que as impeça disso, o mesmo ódio será desviado para a terra, para as mulheres, para a natureza, causando infertilidade –sangue na terra. Quando a divindade não é atendida no seu justo pedido, a sua ira transborda para um aspecto sombrio. 
As Erínias se inquietam frente à possibilidade de uma subversão às leis antigas por novas leis, temendo que os filhos ficassem justificados e isentos de culpa, e mais, livres para ferir os pais. Estamos no campo da obediência dos filhos ao poder paterno. Nos versos 711-713, o Coro nas Eumênides afirma:
Então, elevem-se acima de tudo
o respeito sempre devido aos pais
e a hospitalidade a quem pede. (2003, p.171)

Vemos aqui o respeito aos pais equiparado à hospitalidade. Creio que há uma mistura importante a se discriminar. O respeito aos pais acima de tudo, é exatamente o quarto mandamento criticado por Alice Miller. Ele faz parte de uma dinâmica patriarcal autoritária que não leva em conta a pessoa, mas sim a sua posição hierárquica no conjunto. Exime o poderoso da responsabilidade de atos abusivos, pela sua simples colocação no grupo. No entanto, a hospitalidade é uma prática que envolve uma dinâmica de alteridade, de acolhimento do estrangeiro, seja ele quem for. O grego foi culturalmente instruído a receber quem lhe pedia abrigo, lhe ofertando pousada e comida para, apenas no dia seguinte, depois do hóspede alimentado e descansado, perguntar quem seria aquele que o procurava. De uma outra perspectiva, esse tempo dedicado ao acolhimento do outro de fora, dava ao grego a oportunidade de tentar apurar que divindade habitava aquela pessoa e como recebê-la, honrando-a, em sua casa[1]. Tal situação está longe de se fazer patriarcal. É uma situação que, per si, demanda uma abertura para o novo que pode estar a se insinuar no visitante.
Ao priorizar o respeito incondicional aos pais, o que está em jogo é a consanguinidade como afeto inconteste.  As Fúrias não perseguiram Clitemnestra quando esta matou Agamêmnon pois o grau de parentesco não existia. O mesmo ocorreu quando Agamêmnon matou Tântalo II e seu filho para possuí-la. Alice Miller pergunta: Como honrar um pai assassino? Como honrar uma mãe abandonadora? Como considerar “amor” um vínculo que inclui maus tratos?
Parece que esta questão se aplica ao quadro aqui levantado. Temos na Oréstia, Agamêmnon matando o marido e o filho de Clitemnestra, mais tarde matando a mando de Ártemis a filha do casal, Ifigênia, a esposa matando o marido, e o filho, Orestes, matando o padrasto e a mãe. Há um morticínio em grande escala. Miller afirma que enquanto as dores das feridas forem negadas, a pessoa pagará com a saúde (ou seus filhos). Esse fato é também visível em nossos consultórios: filhos vivendo questões mal resolvidas de seus pais, repetindo dramas, reencenando aflições. Diz a autora:
O caminho para se tornar adulto não passa pela tolerância com as crueldades sofridas, mas pelo reconhecimento da própria verdade e pelo aumento da empatia em relação à criança mal tratada. Ele está na percepção de como os maus-tratos dificultaram toda a vida do adulto, de como muitas possibilidades foram destruídas e de como muito dessa miséria foi transmitida para a geração posterior (2011, pp.137,138).
A exploração do contexto em que o paciente cresceu é de suma importância. Há que se levar em conta que a consanguinidade é circunstancial. O que deveria ser considerado significativo é o contexto, os abusos e suas consequências. A entrada de Atena no cenário do julgamento introduz esse aspecto. Orestes é um abusado psíquico. Ainda pequenino, esteve presente no sacrifício de Ifigênia, e foi afastado da mãe, ambivalente e ferida, sob a ameaça implícita de ser morto pelo padrasto.

Realocamento
Este termo é um neologismo que visa nomear o ato de encontrar um novo lugar para algo já destinado a um determinado locus. Utilizo-o para indicar esse movimento psíquico de recolocação do conteúdo traumático ou doloroso, processo pelo qual encontramos um novo lugar interno após um trabalho de elaboração da dor, acompanhado da aquisição de uma nova identidade.
Na tragédia Eumênides, Ésquilo nos oferece material para compreensão simbólica dessa arquitetura. Nos versos 842-846, onde o Corifeu dialoga com Apolo, o primeiro diz:
Levando em consideração tuas palavras,
Zeus tem especial estima pelos pais;
ele, porém, acorrentou seu próprio pai,
o antigo Cronos; como conciliarás
tua argumentação com a conduta dele? (2003, p.177)

A esse propósito, escrevi em um artigo de título Ex-mãe, ex-pai, ex-filho: a data de validade das relações, onde busco, entre outras coisas, tratar do abuso psíquico e jogar luz na diferença de qualidade entre as relações afetivas de caráter consanguíneo e as escolhidas ao longo da vida. Destaco um pequeno trecho:
Somente em Zeus há uma transformação. Tendo sido criado longe da figura devoradora do pai, Zeus pôde realizar tanto a salvação dos irmãos aprisionados, quanto a condução do pai, na velhice, a um sítio de bem-aventurança. Penso que a condição que permitiu Zeus deslocar o pai de lugar, ao invés de vingar-se ou destruí-lo simplesmente, teria sido a sua capacidade de desenvolver outros laços saudáveis com figuras significativas, além do suporte da mãe Reia e do contato empático com seus cinco irmãos e suas respectivas qualidades.
Zeus terá como epíteto polieús, que quer dizer “protetor da família e da pólis”, representante do arquétipo do chefe de família patriarcal (Brandão, 1994). Eu acrescentaria que encontramos também nessa figura o regente maior, capaz de efetivar a passagem do poder reinante a seu filho divino, Dioniso, rompendo com o ciclo de devoramento de filhos do pai Crono e do avô Urano –este por meio de Geia. (2012, p.15)
Também ainda a respeito da questão espacial-simbólica da dor psíquica, ao tratar da tragédia Filoctetes, de Sófocles, vi a possibilidade de abordar o tema pelo viés da condição de vítima. Convido-os a ler as ideias ali colocadas, e ressalto o que  segue:          
O redirecionamento dessa energia para o lugar “correto”, onde ela é carecida, será capaz de findar o embate, bem como curar a identidade ferida do herói, além de sua ferida concreta. Sai, finalmente, do lugar de vítima. E assim, todos embarcam rapidamente para Troia, e o  destino se cumpre. (2013, p.42)
O certame  entre Atena e as Fúrias mostra, de um lado, a reflexão e a contenção em oposição ao ímpeto de vingança e a ira derramada. É maravilhoso observar como a repetição dos versos do Coro indica a mesma dinâmica de repetição que vemos no complexo.  Enquanto a deusa convida as três criaturas a viver em Atenas e ali receber oferendas, abrindo mão da amargura e aceitando uma parceria, as falas das Erínias representadas pelo Coro compõem 30 versos (em dois blocos de 19 e 11) quase idênticos, à exceção de uma ou outra palavra sinônima. Atena pede, insiste para ser ouvida; como se dissesse “ouçam a deusa da sabedoria, um outro feminino a ser considerado, continente de Métis”. É o diálogo entre duas grandes entidades, expressões da sapiência. Ao convidar essas forças primordiais a serem suas hóspedes, habitantes de Atenas, a deusa, com seu discurso persuasivo, não apenas as acolhe, mas lhes dá um lugar de dignidade e destaque. A energia erínia estará, a partir de agora, a seu serviço.

Considerações finais
Mas como se muda de lugar? Como saem as Fúrias de sua posição arrogante? Na pergunta que o Corifeu formula a Atena, após muito atrito e resistência, está a chave para a solução: “Mas, onde moraremos, soberana Atena?”(2003, v.1182, p.188). A resposta da deusa assegura uma pertença: “Num lugar onde não há penas; aceitai-o!”(2003, v.1183, p.188). Enquanto as Fúrias preocupam-se com sua nova identidade, Atena lhes promete um novo lar, novos amigos, um novo olhar de consideração, antídoto contra o  ressentimento. Ensina-nos, assim, como reverter uma maldição: há que aproximar-se do terrível, persistir no diálogo, acolher o antigo, ofertar um lar ao que antes ameaçava. Lida-se com perspicácia e sabedoria contra a força vingadora, mesmo dentro do campo agressivo de Ares (o encontro se dá no Areópago, local consagrado ao deus da guerra, Ares).
Segundo Miller, somente uma escuta verdadeira é capaz de redimir a ferida da criança em nós. Atena propõe justamente isso. Auxilia a escuta, dialoga, troca, e assim vai conjugando puer e senex. Suas características patriarcais discriminam e organizam, e a alteridade que contém abre espaço para a conciliação.
Lembrando que a Inveja –Megera – é uma das Fúrias, e expressão de um lado sombrio da deusa, ao renomear as Erínias como Eumênides e conseguir delas a benevolência e proteção da cidade, Atena integra o feminino terrível. A forma como o faz, diferente de com Aracne e Medusa, mostra um lado criativo em usar da persuasão e da continência, da sabedoria, da paciência e da argumentação. Faz com as palavras o que Zeus fez com correntes, e vai além. Une o feminino das Fúrias transformadas, ao masculino que ela carrega em si, promovendo a passagem de um feminino primordial terrível para cuidador e parceiro, de guerreiro para persuasivo. Assim como o exílio é o mau maior para a cultura grega, ter um lugar outorgado à cidadania, receber uma morada, pertencer, é um bem valioso. Simbolicamente, é de grande importância encontrar um locus interno para as emoções atormentadoras, os ímpetos destrutivos, as arrogâncias, o remorso, a inveja, a vingança, e transformar essas forças em prosperidade.
O movimento de transformar as Fúrias em Eumênides tem a ver com levar a consciência para fora da caverna escura das três divindades. Diz respeito, portanto, a uma outra qualidade de consciência, não mais pela culpa, mas pela reflexão e compaixão. O velho e o novo conciliados obedecem à vida.
Em uma das últimas falas de Atena nas Eumênides, Ésquilo nos presenteia com uma colocação que ilustra essas ideias:

Levada pelo amor a este povo,
deixo com ele as deusas poderosas
mas de trato difícil; seu encargo
é dirigir a vida dos mortais.
Quem não pautar a conduta na vida
pelos ditames destas divindades
temíveis por seu poder inconteste,
não poderá compreender a origem
dos golpes que recebe em sua vida.
Por causa dos pecados de seus pais,
os homens são levados a enfrentá-las
e a morte muda, embora suas vítimas
tentem detê-las com palavras ásperas,
destrói-as em obediência apenas
ao rancor implacável destas deusas.
(2003, vv.1222-1236, p.190)

A divindade Atena, que teve sua mãe engolida pelo pai, se humana fosse, estaria nos apontado em seu mito como enfrentou, ela mesma, suas próprias fúrias, tendo que dar a mão ao seu herói interno, integrar a inveja, contextualizar as relações, praticar a escuta, fazer uso consequente da palavra, olhar de nova perspectiva, liberar a criatividade.
É sempre bom rememorar que as mágoas e ressentimentos que alimentam a vingança, quando moram em nosso corpo causam infertilidade e doença. Se transformados em benevolência, passam a funcionar como bem-aventurança. Atena, em seu encontro com Aleto, Tisífone e Megera nos ensina a o que observar para essa grande aventura.
Finalizo, como gosto de fazer, com poesia. Escolho Adélia Prado (1991, p.151) e seu poema Dois vocativos:
A maravilha dá de três cores:
branca, lilás e amarela,
seu outro nome é bonina.
Eu sou de três jeitos:
alegre, triste e mofina,
meu outro nome eu não sei.
Ó mistério profundo!
Ó amor!

Sinopse:
O presente texto traz uma reflexão sobre a tragédia Eumênides, de Ésquilo, chamando atenção para o papel da deusa Atena, e o que ela simboliza na transformação e recolocação da energia das terríveis Erínias, entre elas Megera, a personificação da inveja.

REFERÊNCIAS  BIBLIOGRÁFICAS

BAPTISTA, S. M. S.              (2012) Ex-mãe, ex-pai, ex-filho: a data de validade das relações.  Junguiana, São Paulo, n.30/1, pp.13-19.
                                                (2013) Filoctetes: a expressão do arquétipo da vítima.Qual a medida da dorJunguiana, São Paulo, n. 31/1, pp.39-47.
BRANDÃO, J. S.                    (2000) Dicionário Mítico-Etimológico, Petrópolis:Vozes.
CALASSO, R.                         (1990) As núpcias de Cadmo e Harmonia, São Paulo: Companhia das Letras.
ÉSQUILO                               (2003) Eumêmides, in Oréstia, Tradução de Mário Gama Kury, Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
HESÍODO                               (2001) Teogonia, Tradução de Jaa Torrano, Iluminuras: São Paulo.
MILLER, A.                            (2011) A revolta do corpo, São Paulo: Martins Fontes.
PRADO, A.                             (1991) Poesia reunida, São Paulo: ARX.
OTTO, W.F.                           (2005) Os deuses da Grécia, São Paulo: Odysseus.
WALCOT, P.                          (1978) Envy and the Greeks – a study of human behaviour, Warminster: Aris &Phillipis Ltd.
(Acesso dia 24 de março de 2015)









[1] Ideia apresentada a mim por um amigo grego, estudioso de mitos.