quarta-feira, 1 de julho de 2015

Reflexões Arquetípicas sobre Fins de Mundos: Metáforas para a Clínica e a Cultura


Isabel Ferreira da Rosa Labriola
05 de junho de 2015



O objetivo deste trabalho é refletir sobre imagens que carregam ideias, mitos e sensações sobre Fins de Mundos. Este tema, carregado de imaginações e emoções sobre a nossa finitude, ou morte, tende a invadir nossa mídia cultural e a nossa subjetividade sobre finais e sobre mundos, fertilizando e desafiando nossa clínica psicológica.

O Fim do Mundo é um dos grandes assuntos que viram notícia em variações de tempos, e ocupam a nossa mídia coletiva em fabulações escatológicas. Em dezembro de 2012, reapareceu preconizada pelo mito dos Maias e reacendeu reflexões e medos sobre a vulnerabilidade e sobre a falência trágica da nossa humanidade, submetida a desconhecidos mistérios, ao controle imponderável dos deuses, ou às catástrofes da natureza, que operam sobre os nossos destinos.

A psicologia junguiana, na sua perspectiva arquetípica, tem sido foco dos meus interesses, e, por isso, faço parte, como uma das coordenadoras, do Núcleo de Psicologia Arquetípica (Nuparq) da SBPA SP, que teve início em abril de 2009. O tema do Fim do Mundo surgiu nas experiências de estudo desse núcleo. Lá, em dezembro de 2012, permeabilizados pelo mito dos Maias, começamos a metaforizar ações grandiosas e desmedidas como reações paradoxais fins-de-mundo. Criamos metáforas, como faz a psique naturalmente para se relacionar com o desconhecido, tateando os paradoxos e as adversidades, ou os estranhos sentimentos surgidos diante do inexorável. Este trabalho teve origem em meio a reflexões daquele momento.

Desde então, o tema Fim-do-Mundo se estabeleceu como um provocador, ou como um fio mediador dos meus pensamentos, e tem servido como perspectiva para olhar as conexões tempo e espaço no campo psicológico. Tenho visto que essa ideia apocalíptica está presente em diversos padrões de consciências-mundos, especialmente naquelas que se sustentam numa cultura monoteísta, que tende a se manter em ideias e valores como lógicas únicas, resistindo a transformações, pelo temor de sua finitude. Refletir sobre as vulnerabilidades que se apresentam frente à ideia Fim-do-Mundo tem também me reaberto possibilidades para experimentar novas formas e ficções, outras possibilidades/mundos que estão sendo constantemente inventados pelos fluxos criativos da nossa psique, no consultório e no mundo.

Minhas reflexões já subsidiaram um texto apresentado no VIII Encontro de Estudos de Amigos da Psicologia Arquetípica, em São Francisco Xavier, em setembro de 2014[1]. Naquele encontro, focalizei minha atenção na mítica Maia, que apresenta uma compreensão sobre um tempo circular de fins e começos de mundos entre deuses e homens, e destaquei o valor dessa perspectiva mítica porque ela oferece metáforas psicológicas mais adequadas para a nossa experiência psíquica de vida e de morte.

Neste encontro, pretendo reafirmar esses mesmos argumentos, mas quero aprofundar um olhar para os processamentos psíquicos que ocorrem quando consciências-mundos sofrem a ameaça de morrer, ou precisam morrer para dar espaço para outras formas de coerências-mundos, para as trocas e ganhos entre mundos no campo psicológico e, ainda, para o que seria o reino da morte para a psique.

A ideia contida no mito Maia não era de fim do mundo, mas de fim de um mundo, de troca de consciência, de mudança na relação entre deuses e homens. Pontuava o aceno de um encerramento de um tempo, uma completude, para um novo início; diferente da cultura experimentada pelo nosso ego cristão cultivado nas exortações bíblicas no livro do Gênese e no livro do Apocalipse, onde há uma grande fantasia de “fim do mundo” (que já ocorreu uma vez, com a inundação e a arca salvadora de Noé). No catecismo do nosso mito, muitas são as imagens que nos remetem às condenações e julgamentos do Juízo Final, a danações do Inferno ou a sonhos de ressurreição no Paraíso, numa escatologia comum desde os primeiros séculos do cristianismo.

Em nosso caldo cultural, o fim, ou a morte, está carregado de imaginações nem sempre capazes de nutrir eficazmente nossas psiques, pois elas se mantêm subordinadas às defesas de proteção criadas pelo nosso ego, cristão ocidental, diante de ameaças trágicas, mantendo-nos prisioneiros de uma visão literal de fim.

E o que seria o fim? O último ponto numa história linear? A morte física e literal para o nosso ego ocidental? Ou o fim seria também o começo num ciclo circular? Num cosmo mitológico, o fim é também o começo, e o início já contém o fim. Nas circularidades da alma, morte e vida referem-se uma à outra. Nascimento, declínio e morte são constâncias e concomitâncias num tempo eterno. O mito Maia de fim do mundo se apoia nesse logos da psique, e fertiliza uma melhor compreensão sobre as conexões de tempo e espaço, sobre finitude, completude, inícios e mortes, criação e destruição de mundos.

É nessa direção que pretendo continuar uma perspectiva de olhar – diferenciando o que seriam metaforicamente “fins de mundos”, ou o fim-de-um-mundo, e que pode, ou não, virar o “ fim do mundo”.

A psicologia junguiana, especialmente em sua perspectiva arquetípica, afirma e reconhece a realidade da psique como primariamente metafórica e toda a experiência psicológica como parte de um processo de imaginação e de mitologização. E amplia o campo do trabalho psicológico para além da análise da subjetividade dos sujeitos em consultório particular, afirmando uma psique/alma a ser cultivada e experimentada no campo das ideias/imagens do mundo, num olhar junguiano de anima-mundi.      

Num passeio pela nossa história coletiva, podemos ver que já tivemos alguns fins de mundos - como o dos indígenas, por exemplo. Como diz o antropólogo Viveiros de Castro, “os índios são especialistas com o assunto do fim de mundo, porque viveram isso no sec. XVI e XVII. E até hoje, entre nós, os guaranis continuam especulando sobre o fim do mundo, um certo fim, de um certo mundo, com certo número de consequências”[2].

Para Viveiros, os povos nativos das Américas têm muito a nos ensinar sobre fins de mundo e sobre perdas de mundo – porque sofreram isso, seja por catástrofes biológicas ou por terminações históricas e, não obstante, estão aí, em mundos que não são mais deles. Como na história dos Maias, o fim do mundo indígena foi um começo de mundo branco e europeu, e eles, num exemplo de resistência e manutenção da sua cultura, mantêm-se em seus calendários sagrados, convivendo com os seus antepassados.

Em seus mitos – que são realidades criadas ao psicologizar, ao tentar dar significado e sustentação para os mistérios insondáveis entre vida e morte –, os índios, os Maias e tantos outros povos que já perderam mundos, ensinam-nos que vivemos em sobreposição de mundos, que carregamos mistérios vivos de mortes e de fins de mundo, e que as fabulações dos nossos mortos certamente são parte das nossas gavetas mais íntimas e fazem parte da nossa cosmologia particular. E que é carregando as ausências dos nossos mortos é que vamos oferecendo dignidade e sentido à nossa vida.

Com a perda dos seus mundos, os que já estão vivendo em outros mundos também nos contam que, na nossa realidade terrena e psicológica, existem muitos e outros tipos de mundos, outras formas de viver e de se caminhar por um mundo sem chamar de seu.

As atuais emigrações da África e do Haiti, ocasionadas por guerras, pestes e fome, também nos têm feito assistir a muita gente andando sem mundo, e os seus mundos ficando sem gente. Estão se esparramando por outros mundos, vão virar outras gentes, vão diversificar mundos, ampliar sincretismos culturais. Mas, antes, precisam encontrar outros tipos de mundo e de perspectivas, e estão, literal e psicologicamente, rodeando Hades em lotação de barcos clandestinos, que navegam entre mundos visíveis e invisíveis, em fronteiras e limiares numinosos, numa situação ontológica de quase-vida e quase-morte.

Assistimos e somos afetados por essas imagens, que também nos conduzem. Vivemos em circularidade, num grande cosmos psíquico, onde as fronteiras entre mundos – múltiplos, diversos, idealizados ou ameaçadores – são constantemente experimentadas como realidades em nossa psique, que deseja mundos, que busca realizações e completudes bem maiores do que o único e conhecido lar do eu.

Experimentamos psiquicamente que somos atravessados por outras complexidades/mundos, para além das fronteiras de barricadas de defesa ou proteção de um ego patriótico salutar, embora essa seja uma experiência evitada por ele, que, com uma visão monoteísta, tende a se fixar em padrões únicos e se nega a navegar pela multiplicidade arquetípica da psique. Ameaçado para além do que reconhece como suas próprias fronteiras, é difícil ao ego aceitar que há outras formas de viver e de se caminhar por um mundo sem chamar de seu.

A morte, entendida como contrária à vida, é a grande protagonista sombria e indesejada na ideia/imagem fim-do-mundo. Nela somos raptados, como na mítica dos Mistérios de Eleusis, ao invisível e desconhecido mundo de Hades. E, então, experimentamos, como Perséfone, uma ingenuidade em nós sendo abusada, nosso ego maculado por uma outra realidade – mundo da alma.

Em rapto, experimentamos sensações metaforicamente borderlines entre mundos. Nas fronteiras entre mundos, ou, em situações limítrofes, ficamos num corpo de consciência – mundo dado –, enquanto também experimentamos um corpo sutil, tangível, estranho, novo, invisível e real, que nos desorganiza, e também nos tem. Tateamos abismos, como Perséfone, cheirando o rapto para outro mundo, temendo o abandono ou a morte literal, em campo psicológico intermediário.

Aprendemos, desde Freud, que somos constantemente raptados, seduzidos ou acompanhados pelo desconhecido e invisível inconsciente, ou pela cultura de um mundo subterrâneo. Ficamos com a tendência a experimentar as situações paradoxais, ambíguas, confusas, e ainda desconhecidas, como ameaçadoras ou trágicas, e assemelhadas ao retorno de um reprimido inconsciente, a um reino do julgamento e da morte, das trevas, localizando lá - “o fim do mundo”.

Mas também aprendemos, desde Jung, que lá se encontra a nossa ontologia, os nossos significados mais íntimos e ancestrais, o lugar de uma criatividade almada, que pede refinamento e realização, o espaço psíquico de circulação de muitos deuses, variadas lógicas de vida e de morte, aqui e agora e em tempo eterno. Na verdade, “para os gregos homéricos, a psique era encontrada apenas no Hades. O mundo das trevas – não a vida – era o lugar da psique” (Berry, 2014, pag. 33). E a morte, essa desconhecida temível, é a nossa constante companheira, o verdadeiro lugar e lar da alma. Então compreendemos que a casa de Hades, ou da morte, é um reino psicológico agora, não um reino escatológico depois.

Nas nossas teorias psicológicas, aprendemos a separar e a transitar entre mundos: mundo de cima – da luz, da consciência – e mundo subterrâneo – das trevas, do inconsciente. E vivemos no equilíbrio dessas fronteiras e, em duas dimensões de mundo, ficamos no terreno da ambivalência, ou do ambíguo. Mas acontece que quando estamos na experiência de uma delas, então, estamos também com a outra (em concomitância, em paralelo, ou em simultaneidade). Uma é condição da outra, porque elas são padrões, construtos psíquicos – cada parte de uma constela a outra. Viram caminhos de acesso, de um lado mais consciente para o outro mais inconsciente, ou vice-versa. O interessante é que isso também pode conduzir minha consciência naturalmente para lugares desconhecidos, portanto mais profundos, e provocar o meu ego a ser mais imaginal, poroso, imaginativo, criativo.

Assim, vamos nos enredando, circulando entre tempos e espaços psíquicos, entre realidades de homens e de deuses. E criamos mundos de consciência, conforme padrões vividos na mítica das nossas experiências, e mantemos nossos argumentos e lógicas em significados e imagens que sustentam as verdades necessárias para a manutenção desses nossos mundos.  Apegamos-nos a eles e vivemos temendo que eles cheguem a um fim.

Temos, cada um, uma equação particular-mundo, que nos sustenta, que nos justifica, que nos mantém permeabilizados por nossos compromissos (neuróticos) entre mundos. E na conexão entre mundos, nossa realidade consciente mantém-se em complexos arranjos conforme a fertilidade gestada nas profundezas de um mundo desconhecido, inconsciente, ou mais abaixo. Nossa realidade-mundo, realidade-psique, é produto das germinações feitas lá, abaixo, enquanto processamento das percepções dos objetos do mundo de cima. Nossos sintomas possuem uma intencionalidade subterrânea e só chegam a um fim quando não mais sustentam o mundo da superfície. E só então nosso arranjo de compromisso neurótico fracassa. Rompe-se com um mundo que perdeu sua validade de sustentação psíquica e abre-se para um novo mundo de possibilidades, que já se insinuava.

Sair da contenção neurótica do sintoma como padrão único de funcionamento é uma experiência de fim-de-um-mundo e, conforme o nosso apego e estreitamento psíquico, pode ser experimentado, temido e evitado, como se fosse o “fim do mundo”. Por isso, precisamos ampliar nossa perspectiva para a multiplicidade-mundo da psique e sua diversificada cosmologia de deuses e padrões de funcionamento. E também confiar na sua natural dissociabilidade para contemplar as variadas possibilidades de saúde/doença, conforme a labilidade criativa de ajustes psíquicos, que pode flexibilizar e conter a expressão plural de lógicas particulares.
                     
Acontece que nosso arranjo neurótico é compromissado com o ego, tendenciosamente monoteísta, e sustenta mecanismos criados entre ele e o mundo subterrâneo, em alianças protetoras e defensivas, que inicialmente foram úteis e necessárias. E a quebra dessa ego-sintonia é também o fim de um mundo funcional, mesmo que um novo e mais enriquecedor mundo já esteja se criando.

Largar um vício, mudar um hábito, obter insights novos, aprender algo novo, deixar de histericar por amor, conseguir vencer o pânico do avião, conseguir pisar na areia ou na lama, são conquistas de novos mundos que implicam em perder o gozo mórbido de um conhecido e velho padrão de mundo. Uma mudança de consciência, uma transformação de atitudes, uma outra perspectiva, que implica no mergulho terapêutico ao mundo das trevas, para reencontrar outros caminhos de expressão da alma, que se encontrava enfeitiçada por um único e defensivo apego do ego.

Se não, vejamos: nossa prática psicoterapêutica, permeabilizada pelos nossos sistemas teóricos, tem se visto frente à necessidade de desfazer literalismos cultivados nas patologias ou dessaranjos de sentidos, que se apresentam na vida cotidiana dos nossos pacientes. E experimentamos, conforme Jung, que, ao desliteralizarmos protótipos diagnósticos, podemos enxergar os mecanismos imaginativos “como-se” por trás dos sintomas. Precisamos do exercício de metaforizar. Ao fazê-lo, podemos apreciar as equações impressas nos nossos mecanismos “como-se” esquizoides ou paranóides, em nossas áreas “como-se” de psicopatia ou de respostas histéricas; e observar que são criados, ou são ficções defensivas, em respostas de urgência para traumas vividos. E, então, podemos valorá-los com as suas significações, e talvez liberá-los dos seus efeitos possessivos emocionais.

Se nos voltarmos para a ontologia dos sofrimentos psíquicos, desde a psicanálise, podemos observar angústias iniciais de um ego sendo ameaçado, em situações de perigo, temendo seu aniquilamento e morte. Ele fica em desamparo, conforme sua história pessoal, diria Freud, e também conforme sua conexão com um plano arquetípico, de um inconsciente coletivo, diria Jung. Seja seguindo um desenvolvimento linear de um tempo histórico – localizando fixações ou regressões –, ou valorando os pontos de desequilíbrio nos raptos de novos significados num tempo eterno, alteramos ou somos alterados por forças outras, para além da nossa defendida integridade narcísica.

E, num intrincamento de ameaças (de dentro e de fora), criamos defesas que negam, idealizam, reprimem, inibem emoções, projetam no outro, fazem grandes cisões que alienam psicoticamente os significados, expulsam e destroem, adoecem-nos em bipolaridades, dramatizam disfuncionalmente a vida. Também ficamos deprimidos, entristecemos ou nos encapsulamos narcísicamente numa racionalidade descrente e alienada. Em esquemas de agitação paranoide, literalizamos o que seriam situações novas e de angústia e nos aferramos em sentidos únicos. E, com isso, perdemos também o humor, a leveza, o desejo e a possibilidade, ainda que inquietante, de se apropriar do novo que está imerso em outras estéticas, mais adequadas à nossa excentricidade particular. Nossa individualidade multifacetada é pouco saboreada ao temermos cair em experiências fragmentadas.

Vivemos tão ameaçados pela nossa condição humana mortal, que, muitas vezes, não nos apropriamos suficientemente das conquistas que fazemos quando o desequilíbrio nos visita em fatos da vida. Tendemos a valorizar um desenvolvimento medido só num tempo linear e, então, é mais fácil aceitarmos e assimilarmos, inclusive psicologicamente, nossas terminações históricas individuais, as perdas de mundos a serem superados: mundo da infância, mundo adolescente, mundo adulto – numa conquista hierárquica evolutiva. Quase não localizamos nossas mudanças de mundo num plano do tempo eterno. Mas nossos raptos para outras consciências são também saltos quânticos, pontos de virada, reinvenções importantes da vida.

Num passeio pela nossa psicologia particular, temos memórias altamente significativas dos nossos pontos de virada, de como éramos, ou quem éramos, de certos acontecimentos simbolicamente determinantes que nos fizeram mudar de ideia, de padrão de comportamento e de vida. De como chegamos à completude de uma lógica, de um relacionamento, de um casamento, com a gente mesmo ou com o outro, que nos fizeram romper formatos de vida, e nos obrigaram, por imperativo interno ou por perda da complementaridade de fora, a reinventar novas vidas, novos mundos. Que mundos de ilusões e de planos morreram, para que fosse possível a reinvenção da vida, ou para caber novas consciências-mundo?

Podemos observar a circularidade de progressão e retorno de um tempo eterno que acontece na nossa experiência, muitas vezes ficamos capturados na transitoriedade de um talvez, num gesto fora de tempo e lugar, num acaso inesperado, na morte repentina de alguém querido, numa doença, num encontro amoroso, em armadilhas do destino. Ficamos, sem nenhum controle, em tempo psicológico, numa liga entre tempo sagrado e temporal. Mas, de repente – presente dos deuses –, uma dádiva de novos significados nos alcança. E podemos, então, observar momentos precisos onde percebemos a completude de um padrão de funcionamento que já não sustenta nossas certezas e/ou a chama de um novo estilo de consciência que nos arrebata. Num ponto de virada, num ponto final de equilíbrio, viramos nosso mundo de cabeça para baixo. Da consciência-mundo solar para uma consciência mundo-lunar. E então, novos deuses e deusas podem nos visitar e nos fertilizar em frutíferas e múltiplas imagens psíquicas. Assim, temos podido apreciar como estamos sendo, tendo sido.

Precisamos sair das regiões fixas, bloqueadas e imóveis da psique. Para isso, redescobrir as imagens e ideias que contem e carregam os mitos de um Fim de Mundo para nós torna-se um exercício clínico necessário para dissolver complexos de energia que resistem ao transito de outras formas de coerência e cultura. Nessa perspectiva, os quadros de sofrimento psíquico, os estados melancólicos, a depressão, o pânico, os estados obsessivos, e outros, podem estar comunicando a pobreza cultural de uma psique presa num estreito e único mundo de consciência, que não pode morrer ou acabar.  Transitar entre múltiplas possibilidades de consciência implica na capacidade metafórica de saber-se na borda entre vários mundos, em experiências imaginativas borderlines.

O movimento das transformações e trânsitos pede o convívio imaginal com um corpo sutil de alma –aflita, ingênua, desamparada – porém capaz da experiência alquímica necessária ao campo psicológico, porque busca sua própria reflexão na sua própria interioridade e sofrimento. É necessário caminhar por uma luz imprecisa, estranha ao ego, num lugar atemporal, em espaço intermediário entre mundos, à deriva, contando com a imaginação para perceber os processos inconscientes atrás de uma nova significação funcional. Uma vivência de Perséfone no mundo das trevas, ou seja, a experiência real, embora ameaçadora, da morte das qualidades de um mundo para um outro mundo. Para um novo nascimento é necessário passar pelo eclipse da transição.

O fim de um mundo é o começo de outro. Então talvez possamos considerar a ameaça “fim do mundo” como um aceno para a nossa consciência coletiva e individual, que aponta para a necessidade de trocas ou de transformações mais profundas. Até porque, quer queiramos ou não, estamos sempre em consciências variáveis mais ainda nesses tempos virtuais de internet, que conectam vários mundos. Hermes, o deus mensageiro entre mundos, tem nos alcançado em nossa sofisticação computadorizada pós-moderna, levando-nos a caminhar por múltiplos mundos conectados no tempo, invadindo-nos com urgências transitórias e desafiando-nos a desconstruir estilos únicos, ultrapassados, em descompasso com as múltiplas e diversas culturas de mundo.

Como diz James Hillman, citando o poeta Auden (Hillman, 2015): “Somos vividos por poderes que fingimos compreender”. Deuses nos atingem, arquetipicamente nos enredam em complexos, provocam nosso ego a se relacionar ou a construir defesas, e então, em nossas aflições, nós sabemos que somos visitados por seus poderes.  

Considerando, então, como no mundo dos Maias, que medidas de tempo são também momentos de repouso, completude, finalizações e começos, que coincidem, e que a passagem do tempo consiste em chegadas, revezamentos e partidas das forças divinas entre nós, podemos nos perguntar em que tempo mítico sagrado estamos atualmente e até mesmo comemorar fins de mundos.
                                                                                    
Referencias Bibliográficas:

Berry, Patricia - O Corpo Sutil de Eco: Contribuições para uma Psicologia Arquetípica, tradução de Marla Anjos e Gustavo Barcellos – Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
Hillman, J. e Shamdasani, S. - Lamento dos Mortos – a Psicologia depois do Livro Vermelho de Jung, tradução de Isabel F. R. Labriola e Renata Quirino, Revisão de Gustavo Barcellos – Petrópolis, RJ: Vozes, 2015 (no prelo).
Viveiros de Castro, Eduardo - Filosofia, Antropologia e o Fim do Mundo – palestra em vídeo (http://vimeo.com/78892524)




[1] LABRIOLA, I. F. R. “Tirando um fim de mundo da gaveta”. IMPAR – Instituto Mantiqueira de Psicologia Arquetípica, 2014.
[2] Palestra em vídeo (vide referências).

2 comentários:

Sylvia disse...

Gostei do texto e da ideia de "fim de um mundo" ao lado do "fim do mundo". Provocativo. Que bom que saiu da gaveta. Deixar a visão unívoca da consciência e descobrir outros mundos é tão difícil quanto necessário!

Unknown disse...

Bel, que poético esse seu "fim de mundo"! Tocantes reflexões, provocativas de muitos mergulhos, descendo e subindo, abriram-me um novo pós - "fim de um mundo"!