Isabel Ferreira da Rosa Labriola
05 de junho de 2015
O objetivo deste trabalho é refletir sobre imagens que carregam ideias,
mitos e sensações sobre Fins de Mundos. Este tema, carregado de imaginações e
emoções sobre a nossa finitude, ou morte, tende a invadir nossa mídia cultural
e a nossa subjetividade sobre finais e sobre mundos, fertilizando e desafiando
nossa clínica psicológica.
O Fim do Mundo é um dos grandes assuntos que viram notícia em variações
de tempos, e ocupam a nossa mídia coletiva em fabulações escatológicas. Em
dezembro de 2012, reapareceu preconizada pelo mito dos Maias e reacendeu
reflexões e medos sobre a vulnerabilidade e sobre a falência trágica da nossa
humanidade, submetida a desconhecidos mistérios, ao controle imponderável dos
deuses, ou às catástrofes da natureza, que operam sobre os nossos destinos.
A psicologia junguiana, na sua perspectiva arquetípica, tem sido foco
dos meus interesses, e, por isso, faço parte, como uma das coordenadoras, do
Núcleo de Psicologia Arquetípica (Nuparq) da SBPA SP, que teve início em abril
de 2009. O tema do Fim do Mundo surgiu nas experiências de estudo desse núcleo.
Lá, em dezembro de 2012, permeabilizados pelo mito dos Maias, começamos a
metaforizar ações grandiosas e desmedidas como reações paradoxais
fins-de-mundo. Criamos metáforas, como faz a psique naturalmente para se
relacionar com o desconhecido, tateando os paradoxos e as adversidades, ou os
estranhos sentimentos surgidos diante do inexorável. Este trabalho teve origem
em meio a reflexões daquele momento.
Desde então, o tema Fim-do-Mundo se estabeleceu como um provocador, ou
como um fio mediador dos meus pensamentos, e tem servido como perspectiva para olhar
as conexões tempo e espaço no campo psicológico. Tenho visto que essa ideia
apocalíptica está presente em diversos padrões de consciências-mundos, especialmente
naquelas que se sustentam numa cultura monoteísta, que tende a se manter em ideias
e valores como lógicas únicas, resistindo a transformações, pelo temor de sua
finitude. Refletir sobre as vulnerabilidades que se apresentam frente à ideia
Fim-do-Mundo tem também me reaberto possibilidades para experimentar novas
formas e ficções, outras possibilidades/mundos que estão sendo constantemente
inventados pelos fluxos criativos da nossa psique, no consultório e no mundo.
Minhas reflexões já subsidiaram um texto apresentado no VIII Encontro de
Estudos de Amigos da Psicologia Arquetípica, em São Francisco Xavier, em
setembro de 2014[1].
Naquele encontro, focalizei minha atenção na mítica Maia, que apresenta uma
compreensão sobre um tempo circular de fins e começos de mundos entre deuses e
homens, e destaquei o valor dessa perspectiva mítica porque ela oferece
metáforas psicológicas mais adequadas para a nossa experiência psíquica de vida
e de morte.
Neste encontro, pretendo reafirmar esses mesmos argumentos, mas quero
aprofundar um olhar para os processamentos psíquicos que ocorrem quando
consciências-mundos sofrem a ameaça de morrer, ou precisam morrer para dar
espaço para outras formas de coerências-mundos, para as trocas e ganhos entre
mundos no campo psicológico e, ainda, para o que seria o reino da morte para a
psique.
A ideia contida no mito Maia não era de fim do mundo, mas
de fim de um mundo, de troca de consciência, de mudança na relação entre
deuses e homens. Pontuava o aceno de um encerramento de um tempo, uma
completude, para um novo início; diferente da cultura experimentada pelo nosso
ego cristão cultivado nas exortações bíblicas no livro do Gênese e
no livro do Apocalipse, onde há uma grande fantasia de “fim do mundo” (que já ocorreu uma vez, com a inundação e a arca
salvadora de Noé). No catecismo do nosso mito, muitas são as imagens que nos
remetem às condenações e julgamentos do Juízo Final, a danações do Inferno ou a
sonhos de ressurreição no Paraíso, numa escatologia comum desde os primeiros
séculos do cristianismo.
Em nosso caldo cultural, o fim, ou a morte, está carregado de
imaginações nem sempre capazes de nutrir eficazmente nossas psiques, pois elas se
mantêm subordinadas às defesas de proteção criadas pelo nosso ego, cristão
ocidental, diante de ameaças trágicas, mantendo-nos prisioneiros de uma visão
literal de fim.
E o que seria o
fim? O último ponto numa história linear? A morte física e literal para o nosso
ego ocidental? Ou o fim seria também o começo num ciclo circular? Num cosmo
mitológico, o fim é também o começo, e o início já contém o fim. Nas
circularidades da alma, morte e vida referem-se uma à outra. Nascimento,
declínio e morte são constâncias e concomitâncias num tempo eterno. O mito Maia
de fim do mundo se apoia nesse logos
da psique, e fertiliza uma melhor compreensão sobre as conexões de tempo e
espaço, sobre finitude, completude, inícios e mortes, criação e destruição de
mundos.
É nessa direção que pretendo continuar uma perspectiva de olhar –
diferenciando o que seriam metaforicamente “fins de mundos”, ou o fim-de-um-mundo,
e que pode, ou não, virar o “ fim do mundo”.
A psicologia junguiana, especialmente em sua perspectiva arquetípica,
afirma e reconhece a realidade da psique como primariamente metafórica e toda a
experiência psicológica como parte de um processo de imaginação e de
mitologização. E amplia o campo do trabalho psicológico para além da análise da
subjetividade dos sujeitos em consultório particular, afirmando uma psique/alma
a ser cultivada e experimentada no campo das ideias/imagens do mundo, num olhar
junguiano de anima-mundi.
Num passeio pela nossa história coletiva, podemos ver que já tivemos
alguns fins de mundos - como o dos indígenas, por exemplo. Como diz o
antropólogo Viveiros de Castro, “os índios são especialistas com
o assunto do fim de mundo, porque viveram isso no sec. XVI e XVII. E até hoje,
entre nós, os guaranis continuam especulando sobre o fim do mundo, um certo
fim, de um certo mundo, com certo número de consequências”[2].
Para Viveiros, os
povos nativos das Américas têm muito a nos ensinar sobre fins de mundo e sobre
perdas de mundo – porque sofreram isso, seja por catástrofes biológicas ou por
terminações históricas e, não obstante, estão aí, em mundos que não são mais
deles. Como na história dos Maias, o fim do mundo indígena foi um começo de
mundo branco e europeu, e eles, num exemplo de resistência e manutenção da sua
cultura, mantêm-se em seus calendários sagrados, convivendo com os seus
antepassados.
Em seus mitos –
que são realidades criadas ao psicologizar, ao tentar dar significado e
sustentação para os mistérios insondáveis entre vida e morte –, os índios, os
Maias e tantos outros povos que já perderam mundos, ensinam-nos que vivemos em
sobreposição de mundos, que carregamos mistérios vivos de mortes e de fins de
mundo, e que as fabulações dos nossos mortos certamente são parte das nossas
gavetas mais íntimas e fazem parte da nossa cosmologia particular. E que é
carregando as ausências dos nossos mortos é que vamos oferecendo dignidade e
sentido à nossa vida.
Com a perda dos
seus mundos, os que já estão vivendo em outros mundos também nos contam que, na
nossa realidade terrena e psicológica, existem muitos e outros tipos de mundos,
outras formas de viver e de se caminhar por um mundo sem chamar de seu.
As atuais
emigrações da África e do Haiti, ocasionadas por guerras, pestes e fome, também
nos têm feito assistir a muita gente andando sem mundo, e os seus mundos
ficando sem gente. Estão se esparramando por outros mundos, vão virar outras
gentes, vão diversificar mundos, ampliar sincretismos culturais. Mas, antes,
precisam encontrar outros tipos de mundo e de perspectivas, e estão, literal e
psicologicamente, rodeando Hades em lotação de barcos clandestinos, que navegam
entre mundos visíveis e invisíveis, em fronteiras e limiares numinosos, numa
situação ontológica de quase-vida e quase-morte.
Assistimos e somos afetados por essas imagens, que também nos conduzem.
Vivemos em circularidade, num grande cosmos psíquico, onde as fronteiras entre
mundos – múltiplos, diversos, idealizados ou ameaçadores – são constantemente experimentadas
como realidades em nossa psique, que deseja mundos, que busca realizações e
completudes bem maiores do que o único e conhecido lar do eu.
Experimentamos psiquicamente que somos atravessados por outras
complexidades/mundos, para além das fronteiras de barricadas de defesa ou
proteção de um ego patriótico salutar, embora essa seja uma experiência evitada
por ele, que, com uma visão monoteísta, tende a se fixar em padrões únicos e se
nega a navegar pela multiplicidade arquetípica da psique. Ameaçado para além do
que reconhece como suas próprias fronteiras, é difícil ao ego aceitar que há
outras formas de viver e de se caminhar por um mundo sem chamar de seu.
A morte, entendida como contrária à vida, é a grande protagonista
sombria e indesejada na ideia/imagem fim-do-mundo. Nela somos raptados, como na
mítica dos Mistérios de Eleusis, ao invisível e desconhecido mundo de Hades. E,
então, experimentamos, como Perséfone, uma ingenuidade em nós sendo abusada,
nosso ego maculado por uma outra realidade – mundo da alma.
Em rapto, experimentamos sensações metaforicamente borderlines entre mundos. Nas fronteiras entre mundos, ou, em
situações limítrofes, ficamos num corpo de consciência – mundo dado –, enquanto
também experimentamos um corpo sutil, tangível, estranho, novo, invisível e
real, que nos desorganiza, e também nos tem. Tateamos abismos, como Perséfone,
cheirando o rapto para outro mundo, temendo o abandono ou a morte literal, em
campo psicológico intermediário.
Aprendemos, desde Freud, que somos constantemente raptados, seduzidos ou
acompanhados pelo desconhecido e invisível inconsciente, ou pela cultura de um mundo
subterrâneo. Ficamos com a tendência a experimentar as situações
paradoxais, ambíguas, confusas, e ainda desconhecidas, como ameaçadoras ou trágicas,
e assemelhadas ao retorno de um reprimido inconsciente, a um reino do julgamento
e da morte, das trevas, localizando lá - “o fim do mundo”.
Mas também aprendemos, desde Jung, que lá se encontra a nossa ontologia,
os nossos significados mais íntimos e ancestrais, o lugar de uma criatividade
almada, que pede refinamento e realização, o espaço psíquico de circulação de muitos
deuses, variadas lógicas de vida e de morte, aqui e agora e em tempo eterno. Na
verdade, “para os gregos homéricos, a psique era encontrada apenas no Hades. O mundo das trevas –
não a vida – era o lugar da psique” (Berry,
2014, pag. 33). E a
morte, essa desconhecida temível, é a nossa constante companheira, o verdadeiro
lugar e lar da alma. Então compreendemos que a casa de Hades, ou da morte, é um
reino psicológico agora, não um reino escatológico depois.
Nas nossas teorias psicológicas, aprendemos a separar e a transitar
entre mundos: mundo de cima – da luz, da consciência – e mundo subterrâneo –
das trevas, do inconsciente. E vivemos no equilíbrio dessas fronteiras e, em
duas dimensões de mundo, ficamos no terreno da ambivalência, ou do ambíguo. Mas
acontece que quando estamos na
experiência de uma delas, então,
estamos também com a outra (em concomitância, em paralelo, ou em simultaneidade).
Uma é condição da outra, porque elas são padrões, construtos psíquicos – cada
parte de uma constela a outra. Viram caminhos de acesso, de um lado mais
consciente para o outro mais inconsciente, ou vice-versa. O interessante é que isso
também pode conduzir minha consciência naturalmente para lugares desconhecidos,
portanto mais profundos, e provocar o meu ego a ser mais imaginal, poroso,
imaginativo, criativo.
Assim, vamos nos enredando, circulando entre tempos e espaços
psíquicos, entre realidades de homens e de deuses. E criamos mundos de
consciência, conforme padrões vividos na mítica das nossas experiências, e
mantemos nossos argumentos e lógicas em significados e imagens que sustentam as
verdades necessárias para a manutenção desses nossos mundos. Apegamos-nos a eles e vivemos temendo que eles
cheguem a um fim.
Temos, cada um, uma equação particular-mundo, que nos sustenta, que nos
justifica, que nos mantém permeabilizados por nossos compromissos (neuróticos)
entre mundos. E na conexão entre mundos, nossa realidade consciente mantém-se
em complexos arranjos conforme a fertilidade gestada nas profundezas de um
mundo desconhecido, inconsciente, ou mais abaixo. Nossa realidade-mundo,
realidade-psique, é produto das germinações feitas lá, abaixo, enquanto processamento
das percepções dos objetos do mundo de cima. Nossos sintomas possuem uma
intencionalidade subterrânea e só chegam a um fim quando não mais sustentam o
mundo da superfície. E só então nosso arranjo de compromisso neurótico
fracassa. Rompe-se com um mundo que perdeu sua validade de sustentação psíquica
e abre-se para um novo mundo de possibilidades, que já se insinuava.
Sair da contenção
neurótica do sintoma como padrão único de funcionamento é uma experiência de fim-de-um-mundo e, conforme o nosso
apego e estreitamento psíquico, pode ser experimentado, temido e evitado, como
se fosse o “fim do mundo”. Por isso, precisamos ampliar nossa perspectiva para
a multiplicidade-mundo da psique e sua diversificada cosmologia de deuses e
padrões de funcionamento. E também confiar na sua natural dissociabilidade para
contemplar as variadas possibilidades de saúde/doença, conforme a labilidade
criativa de ajustes psíquicos, que pode flexibilizar e conter a expressão
plural de lógicas particulares.
Acontece que nosso
arranjo neurótico é compromissado com o ego, tendenciosamente monoteísta, e sustenta
mecanismos criados entre ele e o mundo subterrâneo, em alianças protetoras e
defensivas, que inicialmente foram úteis e necessárias. E a quebra dessa
ego-sintonia é também o fim de um mundo funcional, mesmo que um novo e mais
enriquecedor mundo já esteja se criando.
Largar um
vício, mudar um hábito, obter insights novos, aprender algo novo, deixar de
histericar por amor, conseguir vencer o pânico do avião, conseguir pisar na
areia ou na lama, são conquistas de novos mundos que implicam em perder o gozo mórbido
de um conhecido e velho padrão de mundo. Uma mudança de consciência, uma
transformação de atitudes, uma outra perspectiva, que implica no mergulho
terapêutico ao mundo das trevas, para reencontrar outros caminhos de expressão
da alma, que se encontrava enfeitiçada por um único e defensivo apego do ego.
Se não,
vejamos: nossa prática psicoterapêutica, permeabilizada pelos nossos sistemas
teóricos, tem se visto frente à necessidade de desfazer literalismos cultivados
nas patologias ou dessaranjos de sentidos, que se apresentam na vida cotidiana
dos nossos pacientes. E experimentamos, conforme Jung, que, ao
desliteralizarmos protótipos diagnósticos, podemos enxergar os mecanismos
imaginativos “como-se” por trás dos sintomas. Precisamos do exercício de metaforizar.
Ao fazê-lo, podemos apreciar as equações impressas nos nossos mecanismos
“como-se” esquizoides ou paranóides, em nossas áreas “como-se” de psicopatia ou
de respostas histéricas; e observar que são criados, ou são ficções defensivas,
em respostas de urgência para traumas vividos. E, então, podemos valorá-los com
as suas significações, e talvez liberá-los dos seus efeitos possessivos
emocionais.
Se nos voltarmos
para a ontologia dos sofrimentos psíquicos, desde a psicanálise, podemos
observar angústias iniciais de um ego sendo ameaçado, em situações de perigo,
temendo seu aniquilamento e morte. Ele fica em desamparo, conforme sua história
pessoal, diria Freud, e também conforme sua conexão com um plano arquetípico,
de um inconsciente coletivo, diria Jung. Seja seguindo um desenvolvimento
linear de um tempo histórico – localizando fixações ou regressões –, ou
valorando os pontos de desequilíbrio nos raptos de novos significados num tempo
eterno, alteramos ou somos alterados por forças outras, para além da nossa
defendida integridade narcísica.
E, num
intrincamento de ameaças (de dentro e de fora), criamos defesas que negam,
idealizam, reprimem, inibem emoções, projetam no outro, fazem grandes cisões
que alienam psicoticamente os significados, expulsam e destroem, adoecem-nos em
bipolaridades, dramatizam disfuncionalmente a vida. Também ficamos deprimidos,
entristecemos ou nos encapsulamos narcísicamente numa racionalidade descrente e
alienada. Em esquemas de agitação paranoide, literalizamos o que seriam
situações novas e de angústia e nos aferramos em sentidos únicos. E, com isso,
perdemos também o humor, a leveza, o desejo e a possibilidade, ainda que inquietante,
de se apropriar do novo que está imerso em outras estéticas, mais adequadas à
nossa excentricidade particular. Nossa individualidade multifacetada é pouco
saboreada ao temermos cair em experiências fragmentadas.
Vivemos tão ameaçados pela nossa condição humana mortal, que, muitas
vezes, não nos apropriamos suficientemente das conquistas que fazemos quando o
desequilíbrio nos visita em fatos da vida. Tendemos a valorizar um desenvolvimento
medido só num tempo linear e, então, é mais fácil aceitarmos e assimilarmos, inclusive
psicologicamente, nossas terminações históricas individuais, as perdas de
mundos a serem superados: mundo da infância, mundo adolescente, mundo adulto –
numa conquista hierárquica evolutiva. Quase não localizamos nossas mudanças de
mundo num plano do tempo eterno. Mas nossos raptos para outras consciências são
também saltos quânticos, pontos de virada, reinvenções importantes da vida.
Num passeio pela nossa psicologia particular, temos memórias altamente
significativas dos nossos pontos de virada, de como éramos, ou quem éramos, de
certos acontecimentos simbolicamente determinantes que nos fizeram mudar de
ideia, de padrão de comportamento e de vida. De como chegamos à completude de
uma lógica, de um relacionamento, de um casamento, com a gente mesmo ou com o
outro, que nos fizeram romper formatos de vida, e nos obrigaram, por imperativo
interno ou por perda da complementaridade de fora, a reinventar novas vidas,
novos mundos. Que mundos de ilusões e de planos morreram, para que fosse
possível a reinvenção da vida, ou para caber novas consciências-mundo?
Podemos observar a circularidade de progressão e retorno de um tempo
eterno que acontece na nossa experiência, muitas vezes ficamos capturados na
transitoriedade de um talvez, num gesto fora de tempo e lugar, num acaso
inesperado, na morte repentina de alguém querido, numa doença, num encontro
amoroso, em armadilhas do destino. Ficamos, sem nenhum controle, em tempo
psicológico, numa liga entre tempo sagrado e temporal. Mas, de repente –
presente dos deuses –, uma dádiva de novos significados nos alcança. E podemos,
então, observar momentos precisos onde percebemos a completude de um padrão de
funcionamento que já não sustenta nossas certezas e/ou a chama de um novo estilo
de consciência que nos arrebata. Num ponto de virada, num ponto final de
equilíbrio, viramos nosso mundo de cabeça para baixo. Da consciência-mundo solar
para uma consciência mundo-lunar. E então, novos deuses e deusas podem nos
visitar e nos fertilizar em frutíferas e múltiplas imagens psíquicas. Assim,
temos podido apreciar como estamos sendo, tendo sido.
Precisamos
sair das regiões fixas, bloqueadas e imóveis da psique. Para isso, redescobrir
as imagens e ideias que contem e carregam os mitos de um Fim de Mundo para nós
torna-se um exercício clínico necessário para dissolver complexos de energia
que resistem ao transito de outras formas de coerência e cultura. Nessa
perspectiva, os quadros de sofrimento psíquico, os estados melancólicos, a
depressão, o pânico, os estados obsessivos, e outros, podem estar comunicando a
pobreza cultural de uma psique presa num estreito e único mundo de consciência,
que não pode morrer ou acabar. Transitar
entre múltiplas possibilidades de consciência implica na capacidade metafórica
de saber-se na borda entre vários mundos, em experiências imaginativas borderlines.
O movimento
das transformações e trânsitos pede o convívio imaginal com um corpo sutil de
alma –aflita, ingênua, desamparada – porém capaz da experiência alquímica
necessária ao campo psicológico, porque busca sua própria reflexão na sua
própria interioridade e sofrimento. É necessário caminhar por uma luz
imprecisa, estranha ao ego, num lugar atemporal, em espaço intermediário entre
mundos, à deriva, contando com a imaginação para perceber os processos
inconscientes atrás de uma nova significação funcional. Uma vivência de
Perséfone no mundo das trevas, ou seja, a experiência real, embora ameaçadora,
da morte das qualidades de um mundo para um outro mundo. Para um novo nascimento
é necessário passar pelo eclipse da transição.
O fim de um mundo é o começo de outro. Então talvez possamos considerar
a ameaça “fim do mundo” como um aceno para a nossa consciência coletiva e
individual, que aponta para a necessidade de trocas ou de transformações mais
profundas. Até porque, quer queiramos ou não, estamos sempre em consciências
variáveis – mais
ainda nesses tempos virtuais de internet, que conectam vários mundos. Hermes, o
deus mensageiro entre mundos, tem nos alcançado em nossa sofisticação
computadorizada pós-moderna, levando-nos a caminhar por múltiplos mundos
conectados no tempo, invadindo-nos com urgências transitórias e desafiando-nos
a desconstruir estilos únicos, ultrapassados, em descompasso com as múltiplas e
diversas culturas de mundo.
Como diz James Hillman, citando o poeta Auden (Hillman, 2015): “Somos
vividos por poderes que fingimos compreender”. Deuses nos atingem, arquetipicamente nos enredam em complexos, provocam
nosso ego a se relacionar ou a construir defesas, e então, em nossas aflições,
nós sabemos que somos visitados por seus poderes.
Considerando,
então, como no mundo dos Maias, que medidas de tempo são também momentos de
repouso, completude, finalizações e começos, que coincidem, e que a passagem do
tempo consiste em chegadas, revezamentos e partidas das forças divinas entre
nós, podemos nos perguntar em que tempo mítico sagrado estamos atualmente e até
mesmo comemorar fins de mundos.
Referencias
Bibliográficas:
Berry, Patricia - O Corpo Sutil de Eco: Contribuições
para uma Psicologia Arquetípica, tradução de Marla Anjos e Gustavo
Barcellos – Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
Hillman, J. e Shamdasani, S. - Lamento dos Mortos – a Psicologia depois do
Livro Vermelho de Jung, tradução de Isabel F. R. Labriola e Renata Quirino,
Revisão de Gustavo Barcellos – Petrópolis, RJ: Vozes, 2015 (no prelo).
Viveiros de Castro, Eduardo - Filosofia,
Antropologia e o Fim do Mundo – palestra em vídeo (http://vimeo.com/78892524)
2 comentários:
Gostei do texto e da ideia de "fim de um mundo" ao lado do "fim do mundo". Provocativo. Que bom que saiu da gaveta. Deixar a visão unívoca da consciência e descobrir outros mundos é tão difícil quanto necessário!
Bel, que poético esse seu "fim de mundo"! Tocantes reflexões, provocativas de muitos mergulhos, descendo e subindo, abriram-me um novo pós - "fim de um mundo"!
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