Suicídios
: Mitologia Grega, Hillman e Loraux
Por: Ana Célia Rodrigues de Souza
Por: Ana Célia Rodrigues de Souza
Não
pergunte, saber é proibido, o fim que os deuses darão a mim ou a ti, Leuconoe;
com os adivinhos da Babilônia não brinque.
É melhor
apenas lidar com o que cruza o seu caminho.
Se muitos
Invernos Júpiter te dará ou se este é o último que agora bate nas rochas da
praia com as ondas do mar Tirreno: seja sábio, beba o seu vinho e para o curto
prazo reveja as suas esperanças.
Mesmo
enquanto falamos, o tempo ciumento está a fugir de nós.
Colha o
dia, confie o mínimo no amanhã.
*** Horacio
Somos seres angustiados. Angustiamo-nos pela consciência
de nossa finitude. Somos seres para a morte. Não temos controle sobre o que o
destino nos reserva, desconhecendo, assim, nosso futuro.
O que nos resta é
imaginar, fantasiar, inventar coisas para fazer, enquanto a vida vai acontecendo.
E como diz Durand (1988: 101): “o imaginário teria como função a eufemização
diante dessa condição de mortais e efêmeros”.
O
suicídio é um assunto complexo e delicado. Segundo Bertolote (2002: 27): “é conhecido
desde tempos imemoriais, descrito em praticamente todas as teogonias e mitos
sobre a criação do mundo e em textos sacros fundamentais de diversas religiões”.
Em
1897 Durkheim (2013: 355) publica como resultado de seu estudo sociológico
sobre suicídio que: “[...] não há um suicídio, mas suicídios. [...] Podemos ter
certeza, portanto, de que existem vários tipos de suicídios qualitativamente
distintos”. No livro O Suicídio, o
autor propõe uma classificação, denominando altruísta: como o suicídio observado em indivíduos demasiadamente
integrados ao grupo social e que se matam em benefício do coletivo; egoísta: como aquele em que os indivíduos
que se colocam como mais importantes ou à margem do grupo social, matam-se
estando pouco integrados ao coletivo, num individualismo descomedido; e anômico (estado de desregramento): como
aquele que ocorre em situações de grande desorientação frente ao extremo
enfraquecimento ou desaparecimento das normas sociais (guerras, crises
econômicas etc.).
Para
o filósofo Camus (2012: 17): “só existe um problema filosófico realmente sério:
o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à
pergunta fundamental da filosofia”.
Como
estudiosa das ideias propostas por James Hillman gostaria de expandir a
compreensão deste fenômeno humano por meio da amplificação simbólica do tema
utilizando como referencial a mitologia grega.
Para
a Psicologia Analítica a psique estrutura-se com base numa rede intrincada de complexos que se afetam mutuamente.
Cada complexo, por sua vez, constitui-se de um núcleo - um arquétipo [etimologicamente: “arkhé
= princípio, origem, fundamento; týpos
= marca, impressão; daí, arquétipos = impressões primordiais existentes na
psique, potencialidades herdadas que intervêm no processo de formação dos
conteúdos da consciência e impelem o indivíduo a repetir certas experiências”
(FRANCISCATO, 2004: 83-84)] - circundado por vivências, memórias, relacionadas
energeticamente, isto é, associadas pela energia afetiva, pelo afeto.
Do
mesmo modo, como características herdadas que se expressam fisiologicamente, no
nível físico, há fenômenos essenciais da vida que se anunciam, em geral,
psiquicamente. Entre esses fatores psíquicos herdados há uma classe especial,
as disposições universais da mente, de acordo com as quais ela (a mente)
organiza seus conteúdos. São categorias da imaginação, essencialmente visuais,
possuindo o caráter de imagens típicas, que Jung denomina de arquétipos.
Essas formas de fantasias arquetípicas são reproduzidas em qualquer lugar e
tempo, sem qualquer vestígio de transmissão direta. Esses componentes
estruturais originais da psique são de uma uniformidade como aqueles do corpo
visível. Os arquétipos, para Jung, seriam os “órgãos da psique pré-racional”.
São formas e ideias eternamente herdadas, sem nenhum conteúdo específico, pois
esses aparecem no curso da vida do indivíduo, quando as “experiências pessoais
se fixam nessas formas” (JUNG, in:
Evans-Wentz, 2013, p. XLI).
Considerando
então, o arquétipo como um padrão de comportamento humano multifacetado em suas
expressões, e sendo os conteúdos mitológicos uma dessas possibilidades de
apresentação, o conhecimento dos relatos míticos nos ajudaria a tentar
compreender melhor a linguagem do inconsciente que rege o comportamento humano
juntamente com a consciência.
Compreender
os suicídios como um comportamento arquetípico - isto é, característico da natureza
humana, no qual da psique emerge um ‘chamado’ de morte - poderia ajudar as
pessoas a não necessitarem vivê-lo na literalidade, se o mesmo fosse ouvido metaforicamente.
A
partir da perspectiva politeísta da psique, ou da multiplicidade de aspectos
psíquicos que nos constitui, em Suicídio e Alma, Hillman (1993) apresenta
de forma bastante didática uma reflexão sobre o suicídio como uma metáfora para
outra forma de existência, e faz também uma diferenciação entre a escuta tanto
do analista e do médico sobre a morte autoinfligida, quanto à da justiça e da
religião. Para o analista, diferentemente dos outros profissionais, a escolha
pela morte é também uma possibilidade legítima para alma em algumas
circunstâncias.
Do ponto
de vista pessoal, compreendo esta reflexão de Hillman sobre
a ideação suicida – tanto aquela que brota impulsivamente, como a que vem sendo
alimentada por um planejamento a médio ou longo prazo - como um símbolo do
‘chamado da alma’ no sentido de conscientizar a pessoa que sofre e solicitar a
atenção da mesma, para o fato de que algum aspecto dela deve morrer, ou melhor,
transformar-se.
A
prevenção do ato de se matar concretamente e o manejo desta situação estariam
na escuta analítica das dores de alma, do sofrimento do paciente, com o intuito
de ajudá-lo a discriminar quais as partes de si mesmo em desacordo com a
totalidade da pessoa poderiam ser transformadas, dando-lhe apoio para enfrentar
as dificuldades de modificações necessárias do ‘status quo’. De modo geral, como seres conservadores, tendemos a
querer mais, sempre do mesmo, do já conhecido! Então, por meio do acolhimento
da dor do outro, podemos auxiliá-lo a dar um sentido diferente às vivências que
lhe sugerem a morte e, assim, tentar evitar que a ‘parte sabote o todo’!
A
mudança de um aspecto em nós só pode ser feita por nós mesmos, por isto
suicídio, a morte autoinfligida deliberadamente. Mas, quem consuma a própria
morte, talvez não tenha entendido o processo simbólico da alma. A morte
necessária seria apenas do aspecto a ser transformado, uma morte metafórica.
Na mitologia grega encontramos diversos
relatos de personagens que se mataram. A seguir vou elencar alguns, descrevendo
as situações em que o suicídio ocorreu e apresentando também uma possível leitura
simbólica para ele.
Mas,
antes, gostaria de trazer algumas considerações feitas por Nicole Loraux,
diretora de estudos na École des Hautes
Études em Sciences Sociales (História e Antropologia da cidade grega), que
partindo de epitáfios, faz um levantamento sobre aquilo que na cidade de Atenas
se diria sobre a morte de homens e de mulheres:
Os homens morreram na guerra,
realizando rigorosamente seu ideal cívico; submissa a seu destino, a mulher
morreu em seu leito (Loraux, 1988: 21).
A autora observa que embora nem todos os homens tenham
morrido em batalhas, a cidade sempre lhes ofereceu uma bela sepultura com
epitáfios de lembrança eterna das qualidades do morto, enquanto que para as
mulheres, a cidade não tinha nada a dizer a respeito de sua morte. A única realização para uma mulher da polis
grega seria a de levar sem alarde uma existência exemplar como esposa e mãe ao
lado de um homem que vive sua vida de cidadão. “A glória das mulheres é não ter
glória. E a “morte heroica” é viril” (op. cit.: 23).
Ainda para a autora, as mortes das mulheres, sempre
apenas relatadas e não mostradas em cena nas tragédias, seriam uma forma de
chamar a atenção para os valores vigentes ou dar voz as distorções do sistema
de valores; e assim, todas as mulheres das tragédias morreram de modo violento,
“morte que não seja somente o fim de uma vida exemplar” (op. cit.: 25). Pois só a morte de homens era mostrada em
cena, enquanto para as mulheres, elas se recolhiam em seus quartos - pequeno espaço
de autonomia concedido às mulheres pela tragédia – refugiando-se para morrer
longe dos olhares: “uma saída silenciosa, um canto de coro e depois o anúncio
por um mensageiro de que a mulher se matou” (op. cit.: 48).
Como
solução de mulher e não ato heroico, a saída é encontrada no suicídio,
reprovado pela moral na confusão da vida cotidiana. “Um guerreiro suicida-se
apenas sob os golpes da desonra, e infligi-se a ele uma absoluta falta de
virilidade” (op. cit.: 30), mas, sanciona-se institucionalmente uma sepultura
solitária e esquecida à margem da cidade e no anonimato. Na tragédia,
sobretudo, morte de mulher, o suicídio, então, é a morte trágica escolhida por
aquelas que se abatem pela dor excessiva de um infortúnio sem saída, diversa da
“mácula máxima que o homem se inflige sob o golpe da vergonha” (op. cit.: 31).
Loraux (1988) também discrimina os tipos de suicídios:
por enforcamento e por lançamento como morte de mulher-esposa, isto é, associado ao casamento – morte “informe”,
sem sangue correndo durante a consumação, onde a corda pode ser substituída por
adornos (véus, cintos, faixas) com que se cobrem e são emblemas de seu sexo –,
e o suicídio sanguinolento (por espada), como morte de mulher-mãe, associado à maternidade, pela qual “nas dores heroicas
do parto, a esposa se realiza plenamente” (p.39), apesar de o ‘matar-se pela
espada’ ser uma opção viril - quando o homem enfrentaria a morte cara a cara,
pelo trespasse de sua espada fixa no solo, cravada em seu corpo, fazendo-o reencontrar
a terra. A autora aponta uma mudança de padrão por meio das heroínas das
tragédias de Eurípides, nas quais, a opção pela morte viril, pela espada,
poderia indicar “uma escolha da mulher de apoderar-se da espada roubando aos
homens sua morte” (p.42).
Os
suicídios na mitologia grega
Entre os
personagens homens, temos o relato dos suicídios de Ájax, Egeu, Hêmon, Héracles,
e Meneceu. Embora para Durkheim (2013), entrar na guerra poderia ser um tipo de
suicídio altruísta, em nome da defesa do coletivo, então, todos os guerreiros
míticos gregos entrariam nesta classificação e poderiam ser considerados
suicidas.
Ájax
Personagem descrito por Sófocles na tragédia homônima Ájax. Era o rei de Salamina e participou
da Guerra de Tróia junto aos demais aqueus (gregos da Ática), com o intuito de
recuperar a rainha Helena, raptada pelo príncipe troiano, Páris. Após a morte
do herói Aquiles, Ájax disputa com Odisseu (Ulisses) as armas do herói morto,
julgando ser o merecedor delas, por sua bravura e dignidade, igualando-se a Aquiles.
Palas Atena, a deusa companheira dos heróis e protetora de Odisseu, lança um
desvario sobre Ájax, que mata um rebanho, achando estar lutando contra
guerreiros inimigos. Ao recuperar a razão, Ájax se mata com a própria espada
por vergonha e desonra frente aos seus companheiros. Poderíamos propor
simbolicamente como um suicídio da faceta heroica que necessita transformar-se
para lidar com a perda da idealização de si mesmo; Ájax não era Aquiles e nem
era visto assim por seus companheiros. Matar o herói em si seria condição para
poder se apropriar ‘de quem se é’ na totalidade.
Egeu
Hêmon
Foi descrito por Sófocles na tragédia de nome Antígona, era filho de Eurídice e
Creonte – irmão de Jocasta. Noivo de Antígona – filha de Édipo e Jocasta –
matou-se com uma espada ao descobrir sua noiva enforcada. Simbolicamente, o
noivo de Antígona morta também não pode mais continuar existindo, a faceta
noivo necessita se transformar para poder se adequar a nova situação da perda
da pessoa amada.
Héracles
Meneceu
Filho de Creonte, irmão de Hêmon, matou-se para salvar a
cidade de Tebas obedecendo à profecia de Tirésias, na qual o regente Creonte só
poderia livrar a cidade da desordem se um bem precioso seu fosse sacrificado.
Meneceu se identificou com esse bem precioso. Após o desterro de Édipo, seus
dois filhos – Polinices e Etéocles - brigaram pelo poder e Polinices atacou
Tebas com auxílio de sete exércitos vizinhos. Tebas venceu os inimigos após o
suicídio de Meneceu. Simbolicamente, podemos pensar na morte da juventude de
Creonte (representada por seu filho Meneceu) para exercer-se como um soberano
sábio, ponderado. Mas, se olharmos da perspectiva de Meneceu, poderíamos pensar
numa autoidealização (considerar-se um bem precioso) que também necessita
transformar-se em função do todo da ‘pessoa’ de Meneceu (se humano fosse).
Descrito por Eurípides nas Fenícias.
Entre as personagens mulheres, temos o suicídio de
Alceste e, por enforcamento de Fedra, Leda, Jocasta, Antígona; por lançamento
de Evadne; e por espada de Dejanira, Eurídice e Jocasta (outra versão). Também
de Anticleia (mãe de Odisseu), por afogamento.
Alceste
Dejanira
Personagem descrita por Sófocles nas Traquínias. Foi esposa de Héracles e enviou ao herói uma túnica
dada a ela por Nesso - um centauro que a desejava - achando ser um presente de
amor, mas na realidade foi um presente de morte, que envenenou e matou
Héracles. Ao perceber a desgraça, Dejanira decidiu acompanhar o herói na morte
e matou-se com uma espada. Como Hêmon, simbolicamente, Dejanira matou a esposa,
pois sem seu amado, ela também não poderia mais existir, há que se lidar com a
perda do marido, matando a esposa em si.
Evadne
Descrita por Eurípedes na peça As Suplicantes. Esposa do herói Capaneu, lançou-se na pira fúnebre
de seu marido, morto diante de Tebas. Também na morte consumou a coabitação com
o marido. Simbolicamente, a mesma situação de Dejanira, a mulher tem que matar
em si a esposa do marido morto, para se adequar a nova situação proposta pelo
destino.
Eurídice
Descrita por Sófocles na tragédia Antígona, é a esposa de Creonte, mãe de Hêmon. Ao saber da notícia
do suicídio do filho, matou-se com uma espada. Simbolicamente, a mãe do filho
morto mata-se, para se adaptar a nova condição, pois sem filho, também não há
mãe. Para se superar a dor, a condição de mãe deve ser transformada, isto é, a
morte metafórica do papel de mãe. E o mesmo ocorre com a mãe de Odisseu,
Anticleia, que pensa que ele não retornará de Tróia e afoga-se no mar (descrito
por Homero na Odisseia).
Leda
Descrita na tragédia de nome Helena por Eurípedes. Desesperada pela má reputação de sua filha
Helena, Leda enforcou-se. Nessa tragédia Helena “não teria sido levada para
Tróia por Páris e sim um espectro (‘clone’) dela, uma imagem feita por Hera,
enquanto a autêntica teria ficado escondida na ilha de Faros, no Egito” (EURÍPEDES,
1951: 536) até o término da Guerra de Tróia. Simbolicamente, na medida em que a
filha não atende as suas expectativas de mãe, esta opta por matar a mãe em si,
até para poder aceitar a filha como ela é.
Jocasta
(Epicasta)
Mãe e esposa de Édipo, com quem tem quatro filhos –
Polinices, Etéocles, Ismene e Antígona. Enforcou-se ao descobrir o incesto
(versão de Sóflocles em Édipo Rei),
ou matou-se com uma espada: “cortou o pescoço com a espada de um dos filhos
mortos e, caiu entre eles” (EURÍPEDES, 1951, As Fenícias, p.141) ao ver seus dois filhos mortos nas portas de
Tebas. Homero denomina Jocasta de Epicasta. Simbolicamente, uma mãe sem filhos
deve matar o aspecto mãe em si para
poder lidar com a perda, e quanto ao incesto, não seria possível ser mãe e
esposa do mesmo homem.
Fedra
Antígona
Há também no mito grego alguns relatos de personagens que
tentaram se matar e não consumaram a morte por interferência de alguma
divindade, como por exemplo: Psiquê ao perder Eros, tentou se afogar e foi impedida
por Pan, Ariadne abandonada por Teseu, pensou em se enforcar, mas foi impedida
por Dioniso. Poderíamos entender como tentativas de mortes metafóricas
possibilitando a transformação de quem eram, para se adaptarem a nova condição,
como um novo modo de lidar com a perda dos amados.
Proponho pensarmos nestes personagens
míticos que se suicidaram como representantes de padrões arquetípicos de
comportamento, presentes nas pessoas que se matam ou que relatam ideação
suicida. O personagem mítico representa o chamado simbólico da alma para que
uma transformação ocorra na pessoa, para que aquele aspecto não mais adequado
se atualize, isto é, ‘morra metaforicamente’, transforme-se.
Cada personagem mitológico se apresenta
com um modo predominante de captar e elaborar os eventos externos e internos,
agindo de acordo com seus pressupostos básicos, governantes de seus
comportamentos. Eles seriam as formas como cada pessoa perceberia ou apreenderia
a realidade, seguida pela avaliação ou julgamento do que foi percebido e,
consequentemente como atuaria no mundo - seu “modus operandi”. Cada um deles tem uma forma de se apresentar, com
um jeito de fazer e de ser que lhe é específico, evidenciando
uma estrutura global que se denomina ‘regência mítica’ (ALVARENGA, 2010:
23-25), ou, o que chamo de campo
arquetípico de modulação dos nossos comportamentos.
Poderíamos
compreender o humano - um projeto arquetípico a se realizar - como um ser
constituído psiquicamente por estes campos
de modulação míticos, que apresentariam os pressupostos para nossas
vivências.
A compreensão da complexa realidade mítico-simbólica –
constituinte de nossa psique – pode ser feita por meio do estudo dos temas
mitológicos que compõem as “histórias de vida” dos personagens, tornando-se
referenciais de grande importância para auxiliar na compreensão dos relacionamentos,
dos conflitos, das doenças e das possíveis alternativas para estes
impasses. Estas “histórias de vida” destas
criaturas, consideradas como expressões arquetípicas que nos regem
psiquicamente, mostram-nos alguns possíveis caminhos de apresentação de
estruturas primordiais que necessitam ser atualizadas e tornadas humanas,
formando os nossos padrões de comportamentos.
Mães devem possibilitar que seus filhos deixem de ser
filhos, suicidando o aspecto mãe em
si mesmas, ou também elaborando a difícil e dolorosa perda deles por
crescimento e, portanto, morte metafórica, ou mesmo, com a perda concreta deles
(relatado por quem já viveu esta experiência como uma das dores mais difícil de
se confrontar).
Viúvos(as) deveriam elaborar suas perdas
deixando suas vidas seguirem adiante, matando em si o aspecto da ‘união
conjugal’, isto é, marido de esposa morta, deve deixar de ser o marido dela e
vice-versa.
Pais,
chefes, governantes devem suicidar em si o aspecto de apego ao poder, força e
juventude, passando o bastão aos mais jovens no momento adequado para ambos. Os
mais jovens, por sua vez, devem, simbolicamente, suicidar-se nesse aspecto de
puerilidade, juventude para poderem assumir as responsabilidades da vida
adulta. Meninas matam-se, simbolicamente, para poderem se tornar mulheres.
Pensando nas considerações de Loraux (1988), apesar de na
atualidade, após os movimentos feministas, a mulher ter diversificado seus papeis
sociais, como também os homens, embora em menor proporção, ainda vivemos no
Ocidente, numa sociedade bastante patriarcal, machista. Homens oprimidos em
suas porções femininas e mulheres, no seu princípio masculino, sofrem por uma
infinidade de situações. E talvez, os eventos motivadores da morte ‘desonrosa e
violenta’ das mulheres, relatados nas tragédias gregas, nas quais os suicídios
ocorreram, não estejam tão distantes dos valores da nossa pós-modernidade
líquida (termo que tomo emprestado de Zygmunt Bauman, 1998).
Pensando-nos como seres andróginos, constituídos de princípios
masculino e feminino - como o símbolo do Tao, com suas polaridades yin e yang -
poderíamos propor que uma mulher, regida por um padrão de comportamento
arquetípico do herói Héracles, em seu princípio masculino, mate-se de modo
viril. Ou, um homem poderia se matar regido por um padrão Fedra em sua
polaridade feminina, e assim por diante. O que dificultaria muito os estudos
quantitativos, pois embora alguns deles possam apontar que “homens se suicidam
mais que mulheres” (BERTOLOTE, 2012: 49-50), qual será o princípio que os regem
nessa escolha? Um homem que se mata motivado por um campo de modulação
arquetípico feminino, não teria a mesma motivação de outro que se mata regido
por um padrão masculino, então, deveriam ser computados da mesma forma? Levando
em conta a participação do inconsciente nos comportamentos humanos, como
deveríamos considerar o suicídio de um homem regido por um campo arquetípico de
modulação de Fedra, por exemplo, seria um suicídio de homem ou de mulher, já
que foi ‘ela’ que se matou ‘nele’?
Dentro desta perspectiva, do ponto de vista pessoal, as
estatísticas que levam em conta apenas os números dos gêneros (homem, mulher)
não acrescentariam muito para a compreensão do evento.
Enfim,
são tantos fatores envolvidos em cada pessoa neste fenômeno tão complexo do
suicídio, que depois de consumado, não podemos conhecer a motivação de cada um
para escolher este modo de sair da vida. Mas, penso na importância da falta de
compreensão dos símbolos do ‘chamado da alma’ e na confusão de tomar a parte
pelo todo, que só podem ser trabalhados, elaborados antes de o fato ocorrer.
Portanto,
só podemos como profissionais de saúde ou como humanos tentar intervir
preventivamente. Para isso, seria muito importante estar atento aos fatores de
risco, termos empatia e sensibilidade para com a dor alheia, encaminharmos -
quando suspeitarmos desta possibilidade - as pessoas em seus “processos de
morrência” (FUKUMITSU, 2015) para acompanhamentos psicológicos que possam
ajudá-las a discriminar que partes de si pedem pela morte, ou transformação. E,
finalmente com o acolhimento amoroso, generoso, auxiliá-las a ressignificar sua
existência, assumindo a responsabilidade pelas próprias escolhas e renúncias,
aumentando a tolerância à dor existencial e a capacidade de se apropriar de
quem se é.
Uma
dificuldade maior estaria em buscar possibilidades para ajudar àquelas pessoas
que não estão em acompanhamento psicológico. Aí, talvez, a grande importância
da prevenção em níveis coletivos, estabelecendo discussões e reflexões sobre o
tema.
Referências
Bibliográficas
ALVARENGA, M. Z. &
cols. Mitologia Simbólica – Estruturas da
Psique e Regências Míticas (2ª ed.). São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010.
BAUMAN, Z. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
BERTOLOTE, J. M. O suicídio e sua prevenção. São Paulo:
Editora Unesp, 2012.
CAMUS, A. O Mito de Sísifo (9a ed.). Rio de
Janeiro: Record, 2012.
DURAND, G. A Imaginação Simbólica. São Paulo:
Cultrix, 1988.
DURKHEIM, E. O suicídio: estudo de sociologia (2a
ed.). Publicação original de 1897. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.
EURÍPIDES. Obras Dramáticas. Buenos Aires: El Ateneo Editorial, 1951.
FRANCISCATO, C. R. A Sedução do Mito. In: Revista Thot,
no. 80, pp. 82-88. São Paulo: Editora Palas Athena, 2004.
FUKUMITSU, K. O. Comunicação
pessoal na Disciplina da pós-graduação do Instituto de Psicologia da USP:
Suicídio: Prevenção e Luto, 2015.
HILLMAN, J. Suicídio e Alma (2a ed.). Petrópolis:
Vozes, 1993.
HOMERO. Odisseia. Edição bilíngue; tradução,
posfácio e notas de Trajano Vieira; ensaio de Ítalo Calvino. São Paulo: Ed. 34,
2011.
HORACIO. Ode Carpe
Diem. Disponível em: http://ed238729.no.comunidades.net/carpe-diem-poema-de-horacio
- Acesso em 20/10/2016.
LORAUX, N. Maneiras trágicas de matar uma mulher:
imaginário da Grécia Antiga. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora Ltda, 1988.