quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Suicídios : Mitologia Grega, Hillman e Loraux
 Por: Ana Célia Rodrigues de Souza 

Não pergunte, saber é proibido, o fim que os deuses darão a mim ou a ti, Leuconoe; com os adivinhos da Babilônia não brinque.
É melhor apenas lidar com o que cruza o seu caminho.
Se muitos Invernos Júpiter te dará ou se este é o último que agora bate nas rochas da praia com as ondas do mar Tirreno: seja sábio, beba o seu vinho e para o curto prazo reveja as suas esperanças.
Mesmo enquanto falamos, o tempo ciumento está a fugir de nós.
Colha o dia, confie o mínimo no amanhã.
                                                                                                        *** Horacio

   
Somos seres angustiados. Angustiamo-nos pela consciência de nossa finitude. Somos seres para a morte. Não temos controle sobre o que o destino nos reserva, desconhecendo, assim, nosso futuro. 

O que nos resta é imaginar, fantasiar, inventar coisas para fazer, enquanto a vida vai acontecendo. E como diz Durand (1988: 101): “o imaginário teria como função a eufemização diante dessa condição de mortais e efêmeros”.

O suicídio é um assunto complexo e delicado. Segundo Bertolote (2002: 27): “é conhecido desde tempos imemoriais, descrito em praticamente todas as teogonias e mitos sobre a criação do mundo e em textos sacros fundamentais de diversas religiões”.
Em 1897 Durkheim (2013: 355) publica como resultado de seu estudo sociológico sobre suicídio que: “[...] não há um suicídio, mas suicídios. [...] Podemos ter certeza, portanto, de que existem vários tipos de suicídios qualitativamente distintos”. No livro O Suicídio, o autor propõe uma classificação, denominando altruísta: como o suicídio observado em indivíduos demasiadamente integrados ao grupo social e que se matam em benefício do coletivo; egoísta: como aquele em que os indivíduos que se colocam como mais importantes ou à margem do grupo social, matam-se estando pouco integrados ao coletivo, num individualismo descomedido; e anômico (estado de desregramento): como aquele que ocorre em situações de grande desorientação frente ao extremo enfraquecimento ou desaparecimento das normas sociais (guerras, crises econômicas etc.).
Para o filósofo Camus (2012: 17): “só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia”.
Como estudiosa das ideias propostas por James Hillman gostaria de expandir a compreensão deste fenômeno humano por meio da amplificação simbólica do tema utilizando como referencial a mitologia grega.

Para a Psicologia Analítica a psique estrutura-se com base numa rede intrincada de complexos que se afetam mutuamente. Cada complexo, por sua vez, constitui-se de um núcleo - um arquétipo [etimologicamente: “arkhé = princípio, origem, fundamento; týpos = marca, impressão; daí, arquétipos = impressões primordiais existentes na psique, potencialidades herdadas que intervêm no processo de formação dos conteúdos da consciência e impelem o indivíduo a repetir certas experiências” (FRANCISCATO, 2004: 83-84)] - circundado por vivências, memórias, relacionadas energeticamente, isto é, associadas pela energia afetiva, pelo afeto.
Do mesmo modo, como características herdadas que se expressam fisiologicamente, no nível físico, há fenômenos essenciais da vida que se anunciam, em geral, psiquicamente. Entre esses fatores psíquicos herdados há uma classe especial, as disposições universais da mente, de acordo com as quais ela (a mente) organiza seus conteúdos. São categorias da imaginação, essencialmente visuais, possuindo o caráter de imagens típicas, que Jung denomina de arquétipos. Essas formas de fantasias arquetípicas são reproduzidas em qualquer lugar e tempo, sem qualquer vestígio de transmissão direta. Esses componentes estruturais originais da psique são de uma uniformidade como aqueles do corpo visível. Os arquétipos, para Jung, seriam os “órgãos da psique pré-racional”. São formas e ideias eternamente herdadas, sem nenhum conteúdo específico, pois esses aparecem no curso da vida do indivíduo, quando as “experiências pessoais se fixam nessas formas” (JUNG, in: Evans-Wentz, 2013, p. XLI).
Considerando então, o arquétipo como um padrão de comportamento humano multifacetado em suas expressões, e sendo os conteúdos mitológicos uma dessas possibilidades de apresentação, o conhecimento dos relatos míticos nos ajudaria a tentar compreender melhor a linguagem do inconsciente que rege o comportamento humano juntamente com a consciência.
Compreender os suicídios como um comportamento arquetípico - isto é, característico da natureza humana, no qual da psique emerge um ‘chamado’ de morte - poderia ajudar as pessoas a não necessitarem vivê-lo na literalidade, se o mesmo fosse ouvido metaforicamente.
A partir da perspectiva politeísta da psique, ou da multiplicidade de aspectos psíquicos que nos constitui, em Suicídio e Alma, Hillman (1993) apresenta de forma bastante didática uma reflexão sobre o suicídio como uma metáfora para outra forma de existência, e faz também uma diferenciação entre a escuta tanto do analista e do médico sobre a morte autoinfligida, quanto à da justiça e da religião. Para o analista, diferentemente dos outros profissionais, a escolha pela morte é também uma possibilidade legítima para alma em algumas circunstâncias.
Do ponto de vista pessoal, compreendo esta reflexão de Hillman sobre a ideação suicida – tanto aquela que brota impulsivamente, como a que vem sendo alimentada por um planejamento a médio ou longo prazo - como um símbolo do ‘chamado da alma’ no sentido de conscientizar a pessoa que sofre e solicitar a atenção da mesma, para o fato de que algum aspecto dela deve morrer, ou melhor, transformar-se.
A prevenção do ato de se matar concretamente e o manejo desta situação estariam na escuta analítica das dores de alma, do sofrimento do paciente, com o intuito de ajudá-lo a discriminar quais as partes de si mesmo em desacordo com a totalidade da pessoa poderiam ser transformadas, dando-lhe apoio para enfrentar as dificuldades de modificações necessárias do ‘status quo’. De modo geral, como seres conservadores, tendemos a querer mais, sempre do mesmo, do já conhecido! Então, por meio do acolhimento da dor do outro, podemos auxiliá-lo a dar um sentido diferente às vivências que lhe sugerem a morte e, assim, tentar evitar que a ‘parte sabote o todo’!
A mudança de um aspecto em nós só pode ser feita por nós mesmos, por isto suicídio, a morte autoinfligida deliberadamente. Mas, quem consuma a própria morte, talvez não tenha entendido o processo simbólico da alma. A morte necessária seria apenas do aspecto a ser transformado, uma morte metafórica.
 Na mitologia grega encontramos diversos relatos de personagens que se mataram. A seguir vou elencar alguns, descrevendo as situações em que o suicídio ocorreu e apresentando também uma possível leitura simbólica para ele.
Mas, antes, gostaria de trazer algumas considerações feitas por Nicole Loraux, diretora de estudos na École des Hautes Études em Sciences Sociales (História e Antropologia da cidade grega), que partindo de epitáfios, faz um levantamento sobre aquilo que na cidade de Atenas se diria sobre a morte de homens e de mulheres:

Os homens morreram na guerra, realizando rigorosamente seu ideal cívico; submissa a seu destino, a mulher morreu em seu leito (Loraux, 1988: 21).

            A autora observa que embora nem todos os homens tenham morrido em batalhas, a cidade sempre lhes ofereceu uma bela sepultura com epitáfios de lembrança eterna das qualidades do morto, enquanto que para as mulheres, a cidade não tinha nada a dizer a respeito de sua morte.  A única realização para uma mulher da polis grega seria a de levar sem alarde uma existência exemplar como esposa e mãe ao lado de um homem que vive sua vida de cidadão. “A glória das mulheres é não ter glória. E a “morte heroica” é viril” (op. cit.: 23).
            Ainda para a autora, as mortes das mulheres, sempre apenas relatadas e não mostradas em cena nas tragédias, seriam uma forma de chamar a atenção para os valores vigentes ou dar voz as distorções do sistema de valores; e assim, todas as mulheres das tragédias morreram de modo violento, “morte que não seja somente o fim de uma vida exemplar” (op. cit.: 25).  Pois só a morte de homens era mostrada em cena, enquanto para as mulheres, elas se recolhiam em seus quartos - pequeno espaço de autonomia concedido às mulheres pela tragédia – refugiando-se para morrer longe dos olhares: “uma saída silenciosa, um canto de coro e depois o anúncio por um mensageiro de que a mulher se matou” (op. cit.: 48).
Como solução de mulher e não ato heroico, a saída é encontrada no suicídio, reprovado pela moral na confusão da vida cotidiana. “Um guerreiro suicida-se apenas sob os golpes da desonra, e infligi-se a ele uma absoluta falta de virilidade” (op. cit.: 30), mas, sanciona-se institucionalmente uma sepultura solitária e esquecida à margem da cidade e no anonimato. Na tragédia, sobretudo, morte de mulher, o suicídio, então, é a morte trágica escolhida por aquelas que se abatem pela dor excessiva de um infortúnio sem saída, diversa da “mácula máxima que o homem se inflige sob o golpe da vergonha” (op. cit.: 31).
            Loraux (1988) também discrimina os tipos de suicídios: por enforcamento e por lançamento como morte de mulher-esposa, isto é, associado ao casamento – morte “informe”, sem sangue correndo durante a consumação, onde a corda pode ser substituída por adornos (véus, cintos, faixas) com que se cobrem e são emblemas de seu sexo –, e o suicídio sanguinolento (por espada), como morte de mulher-mãe, associado à maternidade, pela qual “nas dores heroicas do parto, a esposa se realiza plenamente” (p.39), apesar de o ‘matar-se pela espada’ ser uma opção viril - quando o homem enfrentaria a morte cara a cara, pelo trespasse de sua espada fixa no solo, cravada em seu corpo, fazendo-o reencontrar a terra. A autora aponta uma mudança de padrão por meio das heroínas das tragédias de Eurípides, nas quais, a opção pela morte viril, pela espada, poderia indicar “uma escolha da mulher de apoderar-se da espada roubando aos homens sua morte” (p.42).

Os suicídios na mitologia grega

            Entre os personagens homens, temos o relato dos suicídios de Ájax, Egeu, Hêmon, Héracles, e Meneceu. Embora para Durkheim (2013), entrar na guerra poderia ser um tipo de suicídio altruísta, em nome da defesa do coletivo, então, todos os guerreiros míticos gregos entrariam nesta classificação e poderiam ser considerados suicidas.

Ájax

            Personagem descrito por Sófocles na tragédia homônima Ájax. Era o rei de Salamina e participou da Guerra de Tróia junto aos demais aqueus (gregos da Ática), com o intuito de recuperar a rainha Helena, raptada pelo príncipe troiano, Páris. Após a morte do herói Aquiles, Ájax disputa com Odisseu (Ulisses) as armas do herói morto, julgando ser o merecedor delas, por sua bravura e dignidade, igualando-se a Aquiles. Palas Atena, a deusa companheira dos heróis e protetora de Odisseu, lança um desvario sobre Ájax, que mata um rebanho, achando estar lutando contra guerreiros inimigos. Ao recuperar a razão, Ájax se mata com a própria espada por vergonha e desonra frente aos seus companheiros. Poderíamos propor simbolicamente como um suicídio da faceta heroica que necessita transformar-se para lidar com a perda da idealização de si mesmo; Ájax não era Aquiles e nem era visto assim por seus companheiros. Matar o herói em si seria condição para poder se apropriar ‘de quem se é’ na totalidade.

Egeu
          
  Rei de Atenas, pai de Teseu (o herói que mata o Minotauro no Labirinto de Creta). Egeu levou muitos anos para conseguir ter um filho. Em visita à cidade de Trezena, o rei é embriagado por seu amigo Piteu, decifrador de enigmas, e acaba dormindo com a filha de seu anfitrião, Etra.  Faz um combinado com a mesma de que se ela engravidasse, deveria criar o filho ali, para protegê-lo, até que ele tivesse condições de levantar uma imensa pedra e recolher uma espada e um par de sandálias que deixaria para o filho. Por volta de seus 16 anos, Teseu é informado pela mãe sobre sua origem, levanta a pedra pegando os objetos que o pai lhe deixou e segue para Atenas em busca do mesmo. Egeu o reconheceu pela espada, acolhendo-o como filho legítimo. Atenas - cumprindo uma punição por ter matado em jogos olímpicos o filho do rei Minos - tinha que mandar 14 jovens por ano, para a cidade de Creta, para alimentar o Minotauro. Com a população descontente pela aceitação de Egeu de realizar a punição, Teseu - para ajudar o pai - resolveu ir para a ilha, junto com os demais escolhidos, tentar matar a criatura abominável. Faz um acordo com o pai de que se fosse vencedor, trocaria as velas do barco que os levaria à Creta, substituindo as negras da partida por brancas. Após realizar seu feito, Teseu se esqueceu de trocá-las, e Egeu ao avistar de uma colina as velas negras do barco, matou-se lançando-se dali, dando  nome ao mar onde caiu de Mar Egeu. O pai não suportou a ideia da dor do filho morto, pois nem esperou o barco atracar para conferir; ou simbolicamente, pensaria também no suicídio metafórico do velho pai regente, deixando o poder para seu herdeiro, assim se transformando ao apropriar-se de sua nova condição, o aposentado. A impulsividade de Egeu ao concluir antes do encontro poderia ser pensada “como se ele fosse possuído por uma energia do arquétipo de puer, enquanto o filho, um jovem com a cabeça em outro foco, segue como fazem os jovens” (BAPTISTA, 2015). Os pais pensam nos filhos e os filhos esquecem-se dos pais. Egeu se matou por pensar não ter mais Teseu (um filho tão esperado). “Fazer do filho razão da sua vida é algo mortal; esta pode ser uma interpretação possível, cujo desfecho também foi a abertura de espaço para o reinado de Teseu, colocando as coisas em seus lugares” (op. cit.: idem).

Hêmon
            Foi descrito por Sófocles na tragédia de nome Antígona, era filho de Eurídice e Creonte – irmão de Jocasta. Noivo de Antígona – filha de Édipo e Jocasta – matou-se com uma espada ao descobrir sua noiva enforcada. Simbolicamente, o noivo de Antígona morta também não pode mais continuar existindo, a faceta noivo necessita se transformar para poder se adequar a nova situação da perda da pessoa amada.

Héracles
        
    O herói dos doze trabalhos. Há duas versões conhecidas de sua morte. Uma na qual morreu envenenado por uma túnica recebida de sua segunda esposa Dejanira. Ela foi enganada pelo centauro Nesso (que a desejava), achando que estava enviando um presente de amor eterno. Na segunda versão, Héracles se matou numa pira gigantesca que ele preparou, tentando aliviar sua imensa dor de alma, por num acesso de loucura ter matado sua mulher Mégara e seus filhos. Discute-se também se os doze trabalhos do herói determinados por Hera – a deusa dos casamentos legítimos, da família e dos contratos sociais – seriam para expiar os homicídios cometidos por Héracles. Ou, se o herói enlouqueceu e matou sua família após realizar seus feitos, e aí, matou-se pelo fogo com o objetivo de purificar sua alma. Simbolicamente, depois de tantos feitos não poderia continuar o mesmo, uma mudança radical é necessária para se adequar a quem se é no presente; frente a sua jornada não poderia voltar para a mesma situação, igual ao passado, antes de suas realizações; pensaria num adolescente que vai estudar em outro país, quando retorna não é mais o mesmo, sendo outro para sua família; então, tanto a família foi morta metaforicamente como o herói também se matou, ou transformou-se totalmente. Foi descrito por Sófocles nas Traquínias e por Eurípedes na tragédia homônima Héracles.

Meneceu
            Filho de Creonte, irmão de Hêmon, matou-se para salvar a cidade de Tebas obedecendo à profecia de Tirésias, na qual o regente Creonte só poderia livrar a cidade da desordem se um bem precioso seu fosse sacrificado. Meneceu se identificou com esse bem precioso. Após o desterro de Édipo, seus dois filhos – Polinices e Etéocles - brigaram pelo poder e Polinices atacou Tebas com auxílio de sete exércitos vizinhos. Tebas venceu os inimigos após o suicídio de Meneceu. Simbolicamente, podemos pensar na morte da juventude de Creonte (representada por seu filho Meneceu) para exercer-se como um soberano sábio, ponderado. Mas, se olharmos da perspectiva de Meneceu, poderíamos pensar numa autoidealização (considerar-se um bem precioso) que também necessita transformar-se em função do todo da ‘pessoa’ de Meneceu (se humano fosse). Descrito por Eurípides nas Fenícias.

            Entre as personagens mulheres, temos o suicídio de Alceste e, por enforcamento de Fedra, Leda, Jocasta, Antígona; por lançamento de Evadne; e por espada de Dejanira, Eurídice e Jocasta (outra versão). Também de Anticleia (mãe de Odisseu), por afogamento.

Alceste

           A tragédia de mesmo nome foi escrita por Eurípedes. Considerada a “melhor das mulheres”, era esposa de Admeto, rei da Tessália, sacerdote devoto de Apolo. Admeto ficou sabendo que as Moiras (deusas do Destino) teriam decidido cortar o fio de sua vida e pediu para que Apolo intercedesse por ele, adiando sua morte. As Moiras concordaram desde que ele enviasse alguém em seu lugar. A única pessoa que aceitou ir ao Hades foi sua esposa Alceste, e em troca pediu-lhe que jamais se casasse novamente. Na tragédia não se descreve como Alceste se matou, o coro diz apenas para Admeto, na iminência da morte de Alceste, que “tal desventura justificaria que se cortasse a garganta ou se passasse no pescoço o nó de um laço suspenso, e depois diz que ela parou de respirar” (EURÍPEDES, 1951: 222). Enquanto o rei e seus súditos participavam dos ritos fúnebres, Héracles apareceu pedindo hospedagem e, ao ser bem recebido por Admeto, apesar de seu enlutamento, o herói decidiu ir aos Ínferos e trazer Alceste de volta. Héracles disputou com Tânatos, vencendo-o, e trazendo de volta a rainha. A escolha por morrer em lugar do marido pode simbolicamente ser entendida como a morte necessária da condição de solteira para transformar-se na esposa. Um suicídio metafórico, já que Alceste retornou do mundo de Hades e voltou a viver com Admeto. Com a morte metafórica se confirmam as núpcias, se consuma o casamento.

Dejanira
            Personagem descrita por Sófocles nas Traquínias. Foi esposa de Héracles e enviou ao herói uma túnica dada a ela por Nesso - um centauro que a desejava - achando ser um presente de amor, mas na realidade foi um presente de morte, que envenenou e matou Héracles. Ao perceber a desgraça, Dejanira decidiu acompanhar o herói na morte e matou-se com uma espada. Como Hêmon, simbolicamente, Dejanira matou a esposa, pois sem seu amado, ela também não poderia mais existir, há que se lidar com a perda do marido, matando a esposa em si.

Evadne
            Descrita por Eurípedes na peça As Suplicantes. Esposa do herói Capaneu, lançou-se na pira fúnebre de seu marido, morto diante de Tebas. Também na morte consumou a coabitação com o marido. Simbolicamente, a mesma situação de Dejanira, a mulher tem que matar em si a esposa do marido morto, para se adequar a nova situação proposta pelo destino.

Eurídice
            
Descrita por Sófocles na tragédia Antígona, é a esposa de Creonte, mãe de Hêmon. Ao saber da notícia do suicídio do filho, matou-se com uma espada. Simbolicamente, a mãe do filho morto mata-se, para se adaptar a nova condição, pois sem filho, também não há mãe. Para se superar a dor, a condição de mãe deve ser transformada, isto é, a morte metafórica do papel de mãe. E o mesmo ocorre com a mãe de Odisseu, Anticleia, que pensa que ele não retornará de Tróia e afoga-se no mar (descrito por Homero na Odisseia).


Leda
            Descrita na tragédia de nome Helena por Eurípedes. Desesperada pela má reputação de sua filha Helena, Leda enforcou-se. Nessa tragédia Helena “não teria sido levada para Tróia por Páris e sim um espectro (‘clone’) dela, uma imagem feita por Hera, enquanto a autêntica teria ficado escondida na ilha de Faros, no Egito” (EURÍPEDES, 1951: 536) até o término da Guerra de Tróia. Simbolicamente, na medida em que a filha não atende as suas expectativas de mãe, esta opta por matar a mãe em si, até para poder aceitar a filha como ela é.

Jocasta (Epicasta)
            Mãe e esposa de Édipo, com quem tem quatro filhos – Polinices, Etéocles, Ismene e Antígona. Enforcou-se ao descobrir o incesto (versão de Sóflocles em Édipo Rei), ou matou-se com uma espada: “cortou o pescoço com a espada de um dos filhos mortos e, caiu entre eles” (EURÍPEDES, 1951, As Fenícias, p.141) ao ver seus dois filhos mortos nas portas de Tebas. Homero denomina Jocasta de Epicasta. Simbolicamente, uma mãe sem filhos deve matar o aspecto mãe em si para poder lidar com a perda, e quanto ao incesto, não seria possível ser mãe e esposa do mesmo homem.

Fedra
      
      Filha do rei Minos de Creta, irmã de Ariadne (que ajudou Teseu no Labirinto dando-lhe um fio-guia). Também esposa de Teseu. Personagem descrita por Eurípedes na tragédia Hipólito. Apaixonou-se por seu jovem enteado Hipólito – seguidor da deusa Ártemis e, portanto, adepto da castidade; filho de Teseu com uma rainha das amazonas – e ao ser rejeitada por ele, Fedra enforcou-se. Encontrada por Teseu, segurava na mão um bilhete acusando Hipólito de violentá-la, uma vingança de Fedra frente à rejeição, incriminando Hipólito. Simbolicamente, pode representar a morte necessária do aspecto jovem de Fedra, para a aceitação do envelhecimento de seu parceiro e de si mesma, pois ela se apaixonou pelo filho do marido por enxergar nele o próprio esposo mais jovem. Teseu decidiu mandar matar o filho, sem ouvir sua versão – o que poderia ser pensado como uma demanda de se conscientizar do próprio envelhecimento, com a morte da expressão de sua juventude.

Antígona
  
          Personagem descrita por Sófocles na peça Antígona e por Eurípedes em As Fenícias. Filha de Édipo e Jocasta. Na guerra civil de Tebas, por ocasião da morte de seus irmãos (ambos matam-se um ao outro), enterra Polinices contrariando a proibição do regente Creonte. Condenada à morte em confinamento, enforcou-se.  Para o grego era uma grave falha não sepultar os mortos. Como Creonte considerou Polinices um inimigo que atacou sua cidade, embora fosse um dos príncipes da mesma, ordenou que não fosse sepultado. Antígona escolheu obedecer às leis divinas, mesmo sabendo que seria morta por Creonte e sepultou o corpo de seu irmão. Simbolicamente, a morte ou transformação daquela que está aprisionada, impedida de ser livre para fazer suas escolhas e viver sua vida faz-se necessária.

            Há também no mito grego alguns relatos de personagens que tentaram se matar e não consumaram a morte por interferência de alguma divindade, como por exemplo: Psiquê ao perder Eros, tentou se afogar e foi impedida por Pan, Ariadne abandonada por Teseu, pensou em se enforcar, mas foi impedida por Dioniso. Poderíamos entender como tentativas de mortes metafóricas possibilitando a transformação de quem eram, para se adaptarem a nova condição, como um novo modo de lidar com a perda dos amados.

         Proponho pensarmos nestes personagens míticos que se suicidaram como representantes de padrões arquetípicos de comportamento, presentes nas pessoas que se matam ou que relatam ideação suicida. O personagem mítico representa o chamado simbólico da alma para que uma transformação ocorra na pessoa, para que aquele aspecto não mais adequado se atualize, isto é, ‘morra metaforicamente’, transforme-se.

         Cada personagem mitológico se apresenta com um modo predominante de captar e elaborar os eventos externos e internos, agindo de acordo com seus pressupostos básicos, governantes de seus comportamentos. Eles seriam as formas como cada pessoa perceberia ou apreenderia a realidade, seguida pela avaliação ou julgamento do que foi percebido e, consequentemente como atuaria no mundo - seu “modus operandi”. Cada um deles tem uma forma de se apresentar, com um jeito de fazer e de ser que lhe é específico, evidenciando uma estrutura global que se denomina ‘regência mítica’ (ALVARENGA, 2010: 23-25), ou, o que chamo de campo arquetípico de modulação dos nossos comportamentos.

Poderíamos compreender o humano - um projeto arquetípico a se realizar - como um ser constituído psiquicamente por estes campos de modulação míticos, que apresentariam os pressupostos para nossas vivências.

            A compreensão da complexa realidade mítico-simbólica – constituinte de nossa psique – pode ser feita por meio do estudo dos temas mitológicos que compõem as “histórias de vida” dos personagens, tornando-se referenciais de grande importância para auxiliar na compreensão dos relacionamentos, dos conflitos, das doenças e das possíveis alternativas para estes impasses.  Estas “histórias de vida” destas criaturas, consideradas como expressões arquetípicas que nos regem psiquicamente, mostram-nos alguns possíveis caminhos de apresentação de estruturas primordiais que necessitam ser atualizadas e tornadas humanas, formando os nossos padrões de comportamentos.

            Mães devem possibilitar que seus filhos deixem de ser filhos, suicidando o aspecto mãe em si mesmas, ou também elaborando a difícil e dolorosa perda deles por crescimento e, portanto, morte metafórica, ou mesmo, com a perda concreta deles (relatado por quem já viveu esta experiência como uma das dores mais difícil de se confrontar).

 Viúvos(as) deveriam elaborar suas perdas deixando suas vidas seguirem adiante, matando em si o aspecto da ‘união conjugal’, isto é, marido de esposa morta, deve deixar de ser o marido dela e vice-versa.

Pais, chefes, governantes devem suicidar em si o aspecto de apego ao poder, força e juventude, passando o bastão aos mais jovens no momento adequado para ambos. Os mais jovens, por sua vez, devem, simbolicamente, suicidar-se nesse aspecto de puerilidade, juventude para poderem assumir as responsabilidades da vida adulta. Meninas matam-se, simbolicamente, para poderem se tornar mulheres.

            Pensando nas considerações de Loraux (1988), apesar de na atualidade, após os movimentos feministas, a mulher ter diversificado seus papeis sociais, como também os homens, embora em menor proporção, ainda vivemos no Ocidente, numa sociedade bastante patriarcal, machista. Homens oprimidos em suas porções femininas e mulheres, no seu princípio masculino, sofrem por uma infinidade de situações. E talvez, os eventos motivadores da morte ‘desonrosa e violenta’ das mulheres, relatados nas tragédias gregas, nas quais os suicídios ocorreram, não estejam tão distantes dos valores da nossa pós-modernidade líquida (termo que tomo emprestado de Zygmunt Bauman, 1998).

            Pensando-nos como seres andróginos, constituídos de princípios masculino e feminino - como o símbolo do Tao, com suas polaridades yin e yang - poderíamos propor que uma mulher, regida por um padrão de comportamento arquetípico do herói Héracles, em seu princípio masculino, mate-se de modo viril. Ou, um homem poderia se matar regido por um padrão Fedra em sua polaridade feminina, e assim por diante. O que dificultaria muito os estudos quantitativos, pois embora alguns deles possam apontar que “homens se suicidam mais que mulheres” (BERTOLOTE, 2012: 49-50), qual será o princípio que os regem nessa escolha? Um homem que se mata motivado por um campo de modulação arquetípico feminino, não teria a mesma motivação de outro que se mata regido por um padrão masculino, então, deveriam ser computados da mesma forma? Levando em conta a participação do inconsciente nos comportamentos humanos, como deveríamos considerar o suicídio de um homem regido por um campo arquetípico de modulação de Fedra, por exemplo, seria um suicídio de homem ou de mulher, já que foi ‘ela’ que se matou ‘nele’?

            Dentro desta perspectiva, do ponto de vista pessoal, as estatísticas que levam em conta apenas os números dos gêneros (homem, mulher) não acrescentariam muito para a compreensão do evento.

Enfim, são tantos fatores envolvidos em cada pessoa neste fenômeno tão complexo do suicídio, que depois de consumado, não podemos conhecer a motivação de cada um para escolher este modo de sair da vida. Mas, penso na importância da falta de compreensão dos símbolos do ‘chamado da alma’ e na confusão de tomar a parte pelo todo, que só podem ser trabalhados, elaborados antes de o fato ocorrer.

Portanto, só podemos como profissionais de saúde ou como humanos tentar intervir preventivamente. Para isso, seria muito importante estar atento aos fatores de risco, termos empatia e sensibilidade para com a dor alheia, encaminharmos - quando suspeitarmos desta possibilidade - as pessoas em seus “processos de morrência” (FUKUMITSU, 2015) para acompanhamentos psicológicos que possam ajudá-las a discriminar que partes de si pedem pela morte, ou transformação. E, finalmente com o acolhimento amoroso, generoso, auxiliá-las a ressignificar sua existência, assumindo a responsabilidade pelas próprias escolhas e renúncias, aumentando a tolerância à dor existencial e a capacidade de se apropriar de quem se é.

Uma dificuldade maior estaria em buscar possibilidades para ajudar àquelas pessoas que não estão em acompanhamento psicológico. Aí, talvez, a grande importância da prevenção em níveis coletivos, estabelecendo discussões e reflexões sobre o tema.

Referências Bibliográficas
ALVARENGA, M. Z. & cols. Mitologia Simbólica – Estruturas da Psique e Regências Míticas (2ª ed.). São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010.
BAUMAN, Z. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
BERTOLOTE, J. M. O suicídio e sua prevenção. São Paulo: Editora Unesp, 2012.
CAMUS, A. O Mito de Sísifo (9a ed.). Rio de Janeiro: Record, 2012.
DURAND, G. A Imaginação Simbólica. São Paulo: Cultrix, 1988.
DURKHEIM, E. O suicídio: estudo de sociologia (2a ed.). Publicação original de 1897. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.
EURÍPIDES. Obras Dramáticas. Buenos Aires: El Ateneo Editorial, 1951.
FRANCISCATO, C. R. A Sedução do Mito. In: Revista Thot, no. 80, pp. 82-88. São Paulo: Editora Palas Athena, 2004.
FUKUMITSU, K. O. Comunicação pessoal na Disciplina da pós-graduação do Instituto de Psicologia da USP: Suicídio: Prevenção e Luto, 2015.
HILLMAN, J. Suicídio e Alma (2a ed.). Petrópolis: Vozes, 1993.
HOMERO. Odisseia. Edição bilíngue; tradução, posfácio e notas de Trajano Vieira; ensaio de Ítalo Calvino. São Paulo: Ed. 34, 2011.
JUNG, C.G. Comentário Psicológico. In: EVANS-WENTZ, W. Y. O Livro Tibetano dos Mortos. São Paulo: Pensamento, 2013.

LORAUX, N. Maneiras trágicas de matar uma mulher: imaginário da Grécia Antiga. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora Ltda, 1988.

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

O Fazedor de Chuva

Esta história foi muitas vezes contada, mas Jung, que nos dava poucos conselhos diretos, disse-me um dia: “Nunca faças seminários ou conferências sem contar às pessoas esta história”.
Num dos seus últimos Natais, pouco tempo antes da sua morte, quando nós participávamos do Jantar do Clube (Club Psychologique de Zurich), ele contou-a para nós de novo.
Não havia certamente ninguém na sala que não conhecesse já a história e portanto, depois que ele a contou, toda atmosfera mudou.

Houve uma terrível seca na parte da China onde vivia Richard Wilhelm (sinólogo, amigo de Jung e tradutor do I Ching).
Depois de as pessoas terem tentado em vão os meios conhecidos para obter a chuva, decidiram mandar buscar um fazedor de chuva. Isto interessou muito a Wilhelm que se preparou para estar lá quando o fazedor de chuva chegasse.

O homem veio numa carroça coberta, um pequeno velho ressequido, que fungava com uma repugnância evidente quando saiu da carroça e que pediu que o deixassem sozinho numa pequena cabana em frente da aldeia; mesmo as suas refeições deviam ser deixadas no exterior, diante da porta.
Não se ouviu falar mais dele durante três dias. Depois disso, não somente choveu, mas nevou intensamente, o que nunca se tinha visto nessa época do ano.

Muito impressionado, Wilhelm procurou o fazedor de chuva na cabana e perguntou-lhe como podia ter feito chuva e mesmo neve. O fazedor respondeu: “Eu não fiz a neve; não sou responsável por isso”. Wilhelm insistiu: havia uma terrível seca até à sua vinda e depois, passados três dias, houve grande quantidade de neve. O fazedor de chuva respondeu: “Oh! Isso eu posso explicar. Veja, eu venho dum lugar onde as pessoas estão em ordem; estão em Tao; então o tempo também está em ordem. Mas chegando aqui, vi que as pessoas não estavam em ordem e também me contaminaram. Por esse motivo fiquei sozinho até estar de novo em Tao, e então, naturalmente, nevou”.

Os alquimistas procuravam sem cessar unir os opostos, pois não é senão quando estão unidos que se pode encontrar a verdadeira paz.
Coletivamente nada podemos fazer; Jung repetia-o constantemente: a única forma que temos para fazer alguma coisa, é no indivíduo, é em nós mesmos.
É o princípio do fazedor de chuva: quando o indivíduo está em Tao – local onde os opostos estão unidos – há uma influência inexplicável sobre o ambiente.

Há em nós um lugar onde os opostos estão unidos e nós devemos aprender a ir visitá-lo, permitindo assim à luz voar pelo mundo.

Barbara Hannah
, (1981): «Rencontres avec l’Âme – L’imagination active selon C.G.Jung»; Psychologie, Collection la Fontaine de Pierre.

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

E disse James Hillman :"...Mas eu penso, e sei, que uma das dificuldades que a chamada psicologia arquetípica tem é que,desde o seu início, pareceu-me que ela despotencializou o papel do analista. Isso significa que a ideia de arquétipo podia aparecer em qualquer lugar - pode aparecer no cinema, na pintura, no manicômio, em meio às crianças. Os arquétipos são as formas míticas universais. Aparecem em qualquer lugar. E um dos lugares em que aparecem é na clínica, no trabalho com o paciente de fato. Mas esse é apenas um entre a multiplicidade de lugares. Isso relativiza o papel do analista. A ideia arquetípica é um fenômeno cultural, e a prática da psicoterapia ou análise é só um dos lugares onde você trabalha com isso. Em termos de prestígio, isso diminui o lugar do analista."

A que Sonu Shamdasani complementou : "Muito claramente Jung se via como um médico da cultura, usando uma expressão de Nietzsche."

Logo depois o mesmo Sonu disse :"Criticamente, a conclusão a que Jung chega, durante esse período, é que o tema-chave do sofrimento é a perda do significado. Perda do significado não é algo puramente individual, mas está culturalmente determinada, daí sua intensa preocupação com temas históricos. Não é que o indivíduo tenha tropeçado e se desviado na vida de uma maneira puramente idiossincrática, mas ele ou ela está em um horizonte onde, na compreensão de Jung, as tradições que deveria oferecer a eles sustentação, tal como as igrejas, as universidades, a ciência no verdadeiro sentido da palavra, não o fazem mais, e por isso não é surpreendente que um indivíduo termine nesse dilema. Então, enquanto Jung era cuidadoso em sua prática como um médico que cuida de um indivíduo, seu principal foco no trabalho era chegar à raiz do que ele considerava ser esse problema. E essas raízes são históricas. E culturais. Portanto, seu grupo colegiado favorito era a comunidade acadêmica de Eranos."


Connecticut -"Lamento dos Mortos" pag 149

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

A HERANÇA DAIMONICA DE JUNG

James Hillman
(Thompson, Connecticut)


Durante os funerais de Jung na Igreja Reformista Suíça em Kusnacht, o pastor descreveu aquele que ali se homenageava como um herege. É sobre essa face herética de Jung e seu legado para nossa cultura que gostaria de refletir neste ensaio. E, para essa reflexão, vamos olhar histórica e hereticamente para os primeiros trabalhos de Jung na virada do século.

Entre dezembro de 1900 e 1909, Jung trabalhou e viveu no hospital psiquiátrico de Burghoelzli, primeiramente como residente e depois como chefe-assistente. Ele era um membro praticante da Anstaltpsychiatrie, aquele estilo e método de atendimento que implica em uma intensa participação e observação diárias dos pacientes, típica do século XIX, um método que resultou no diagnóstico diferencial que a psicopatologia continua a empregar hoje em dia. Ele era, aparentemente, um membro efetivo do grupo.

Foi lá, durante uma das conferências internas habituais, que ele resenhou A Interpretação dos Sonhos, de Freud, livro o qual Jung foi um dos primeiros e únicos leitores. Apenas 351 cópias do Die Traumdeutung foram vendidas nos seis primeiros anos após sua publicação. Quer seja pelo estímulo de Bleuler, ou por sua própria vontade, Jung tinha o olhar voltado para idéias radicais, heréticas.

Durante esse período, entre os vinte e os trinta e poucos anos de Jung, o Burghoelzli era o lugar para quem tinha um intenso interesse pelas associações mentais. A noção empírica da mente, derivada originalmente de Aristóteles e depois Locke, Hume e Jeremy Bentham em nosso tempo, afirmava que os eventos mentais poderiam ser modelados em cadeias de associações. As leis dessas cadeias tornaram-se domínio da psicologia, tornou-se, em larga escala, a Psicologia, particularmente depois que ela foi aperfeiçoada nos experimentos e teorias do século XIX, primeiramente por Francis Galton e depois por Wundt.
Galton, que era primo de Darwin, ao tempo do nascimento de Jung já havia elaborado uma lista de palavras e medido o tempo de suas próprias associações a elas. E Thomas Brown, de Edinburgo, antes ainda no mesmo século, já havia investigado diferenças individuais nas associações, elaborando algo em torno de nove ou dez leis sobre como e porque idéias evocam outras idéias. A tarefa no Burghoelzli era entrar na mente do paciente através das associações, já que elas, dizia Bleuler, "eram o caminho para se compreender o homem completo”.

Jung virou de cabeça para baixo a coisa toda. Ele fazia novas e heréticas perguntas. Não perguntava que caminhos seguem as associações, nem como e porque funcionam. Em vez disso: como, porque e quando a associação não funciona. Não quais eram suas leis, mas o que as perturbava. Ele voltou-se para o estranho, o anormal, o patologizado. A questão, colocada nos termos do "o que" perturba as associações, implica um "o que", algo "outro", um bloqueio ou interferência, um ímpeto interveniente para além da inércia de um idiota ou da resistência voluntária de um beócio. Um "o que", um "algo", um "outro" mais forte que as próprias leis das associações. Ele não apenas tinha divisado um método experimental para a investigação do inconsciente freudiano; tinha também reimaginado o ser humano como um locus de complexos semi-autônomos, que depois descreveu como daimones, espíritos, kobolds, pequena gente e Deuses.
Claro Jung já havia feito algo semelhante em outro grande trabalho de seus primeiros anos, sua tese de doutorado. No parágrafo de abertura, Jung focaliza seu interesse em "certos estados de consciência”. Ele investiga "fenômenos ocultos”. Numa dissertação médica! Muito estranho. Não uma patografia no sentido comum, um estudo neurológico à la Freud, mas uma patografia dos espíritos; espiritismo. Um estudo não de Helena, ou Frau S. W. como foi chamada, mas sim um estudo sobre o "o que" perturba a atenção usual, um estudo sobre os "outros”, as vozes, figuras e ideações que falavam através de Frau S. W.

Em sua dissertação Jung apresenta uma idéia fundamental que é a idéia fundamental de minhas observações aqui: "o caso não muito comum” , como diz Jung, é para onde se olhar na busca de "uma riqueza de observações interessantes”. O insight é ganho a partir daquilo que ele chama de "inferioridade psicopática”. Esses casos estranhos, diz Jung já no começo de sua tese escrita quando ele tinha 23 ou 24 anos, apontam para algo mais do que meramente uma relação analógica com a psicologia da normalidade. Aqui Jung afirma uma característica metodológica, também compartilhada por Freud e básica a toda a psicologia profunda (ou seja, a psicologia não-humanista, não-transcendental). Começamos com o anômalo, o estranho, o excepcional. Esse método foi muito sucintamente colocado por Edgar Wind: "o lugar comum pode ser entendido como uma redução do excepcional, mas o excepcional não pode ser entendido ao amplificarmos o lugar comum… o excepcional é crucial porque introduz… a categoria mais ampla”.
Sim, ocultismo e espiritismo eram temas comuns e apreciados no começo do século. Também os experimentos de associação. Mas Jung deu ao espiritismo uma virada herética — não por reduzi-lo medicamente à inferioridade psicopática, isto é, a personalidade de Frau S. W., sua desordem e seu tratamento, tentando curar eliminando as outras vozes e figuras. A virada herética estava mais em tomar os outros mais seriamente, dando suporte a suas ideações, substancializando-os e a suas intenções e traços com analogias literárias e históricas. Novamente, seu olhar radical estava pousado nesses daimones e sua relativa autonomia. Ele foi ao encontro da radical independência dos "outros" com a radical independência de suas próprias idéias. Ao invés de reduzi-los a seus constructos mentais, ele expandiu seus constructos mentais por causa deles.
Esses dois exemplos do olhar de Jung para o estranho antecipam sua idéia posterior essencial de personalidade: a idéia da individuação. "A personalidade," como Jung a define, "é a suprema realização da idiossincrasia inata de um ser vivo" (Collected Works 17, §289). O caminho rumo à realização dessa idiossincrasia inata, ou "individuação," Jung define como um "processo de diferenciação" (CW 6, §757). "Diferenciação," declara ele, "significa o desenvolvimento das diferenças, a separação das partes do todo" (CW 6, §705). Não é a totalidade que define a individuação, mas a separação das partes: complexos das funções, projeções das realidades, o individual do coletivo, imagens-de-Deus dos Deuses e o metafórico do metafísico. (CW 11, §835-36; CW 13, §73-75). "Diferenciação significa o desenvolvimento das diferenças," diz Jung. Diferenciação dá a sensação da diferença, a sensação de ser diferente, de diferirmo-nos de nós mesmos e dos outros, de sermos estranhos. Ele até mesmo caracteriza diferenciação como "isolamento" e diz que é o sine qua non da consciência diferenciada. (CW 13, §395) "A individuação é o tornar-se aquilo que não é o ego... aquilo que você não é... Você se sente como se fosse um estranho" (SPRING 75, p. 31). A neurose, que nos aparta fazendo-nos sentir agudamente diferentes, torna-se uma culpa beata pois é a primeira manifestação de isolamento e de heresia. O radicalismo começa na não-adaptação, aquele não-conformismo ou anormalidade da idiossincrasia. A própria autonomia dos sintomas no sofrimento neurótico que não pode ser suprimida, não pode ser extraída e nem aceita — essa autonomia das partes, que experimentamos como sintomas — é a primeira evidência de diferenciação radical. A neurose torna-se o sine qua non da individuação. Individuação e patologizar são inseparáveis, tanto na teoria quanto na existência.
Já que o olhar de Jung era assim tão atraído pelo idiossincrático, quer seja no fato experimental ou no sofrimento clínico, ele foi forçado a procurar por modos mais amplos de compreensão normativa, tais como tipos e arquétipos. Tipos e arquétipos podem generalizar anomalias. De fato, ambos têm maneiras de abarcar o aspecto patologizado dos fenômenos: os primeiros como "função inferior," os segundos como universali fantastici (Vico), ou seja, personificações míticas repletas de exageros. Contudo, uma vez que ninguém é sempre típico e nenhum fenômeno sempre apenas arquetípico, esses agrupamentos mais amplos sempre desconsideram a particularidade e devem se submeter eventualmente à prioridade da individualidade.

Exatamente aqui a idéa junguiana de Self torna-se teoricamente crucial. Ela resolve este problema entre universais monotéticos e individualidades idiossincráticas pois, mesmo que a noção de Self afirme um princípio formal abstrato em funcionamento em todos os seres humanos ao mesmo tempo, ela insiste na idiossincrasia de cada existência. Sempre que a peculiaridade única do Self em qualquer indivíduo dá lugar a símbolos, emoções ou formulações estereotipados, temos a grande patologia do sistema de Jung: a possessão ou identificação com o Self, ou seja, a psicose. Para dizê-lo mais radicalmente, somente a peculiaridade individualizada de nossas psicopatologias nos protege contra a loucura maior. Somos salvos por nossas anomalias ou, como o disse Jung frequentemente, nós não curamos nossos sintomas, eles nos curam.
As analogias religiosas que Jung emprega — Cristo nascido numa manjedoura, o lapis como materia vilis, o ouro no estrume, a pedra que os construtores rejeitaram — expressam o profundo protesto, o profundo protestantismo que se anunciou nos horrendos e heréticos sonhos de infância com o monstro fálico e o monte de excremento sobre a igreja. Podemos falar de "radicalismo congênito," um impulso daimônico dado com sua natureza? Ao menos digamos que ele foi forçado num caminho diferente, um caminho que exigiu dele fazer de sua real idiossincrasia e abandono pelo "pai" a virtude abrangente que ele chamou de "individuação." Mas individuação não é uma idealizada completude centralizante ou totalidade. "Eu não acredito que tal centro (Self) exista, disse numa entrevista a Miguel Serrano. Nem a individuação é atingida por incrementos de desenvolvimento. Em vez, a individuação é a realização da idiossincrasia inata, da diferença inata. Ela não aparece no futuro fictício do envelhecimento. Ela aparece fenomenicamente, em qualquer momento estranho de diferença. A individuação ocorre sempre que normas e hábitos usuais do sujeito são deslocados. Somos vítimas da individuação, não seus patrocinadores.
O olhar de Jung para o estranho recolheu e iluminou fenômenos inusuais um atrás do outro: misticismo tibetano muito antes dos vagabundos do dharma; Zen muito antes de Alan Watts; a sabedoria trickster dos índios americanos antes de Castañeda e Rothenberg; alquimia, parapsicologia e astrologia antes destas serem absorvidas pelos viajantes da Nova Era; a psique da física teórica muito antes de Capra; I Ching antes dos biscoitinhos da sorte; a ressurreição do feminino antes das feministas; a natureza da consciência africana antes de van der Post; o colapso do Cristianismo coletivo antes das filosofias do Deus-está-morto e da teologia do pós holocausto. Ele inspirou os Alcoólatras Anônimos; foi um dos primeiros a dar testemunho do poder do mito como uma realidade viva em funcionamento em ilusões coletivas tais como o Nacional Socialismo e os discos voadores. E muito antes que Thimothy Leary e Ram Dass tomassem suas formas humanas ele já havia escrito sobre o fator tóxico nas condições psíquicas bizarras, ou estados alterados, da psicose.

Não é de espantar que Jung tenha virado um Santo da Nova Era aparecendo, já no começo dos anos sessenta, entre os ícones na capa de um disco dos Beatles.
Mas esses tópicos — sincronicidade, a psique geográfica e racial, ilusões políticas, zen — não são a herança. A fantasia profética aquariana não é a herança. Sejamos bem claros. Não as palavras; mas os verbos e advérbios. Não o campo; mas seu arado. Não o que ele viu; mas como ele viu. Não a lua; mas o inquisitivo e torto dedo que a aponta. Acreditar que avançar a psicologia de Jung ainda mais no inconsciente é avançar esses tópicos é arar os mesmos sulcos profundos e colher uma safra mais rala. Pior, trata-se do literalismo errado. Pois o inconsciente não reside nos campos onde ele o encontrou. O inconsciente toma a si mesmo bem literalmente: busca permanecer inconsciente, portanto ele sempre escapa. "A natureza ama se ocultar," disse Heráclito. Assumir que os campos que Jung explorou são hoje as explorações do inconsciente é ficar preso no tempo, como os fãs de Rudolf Steiner vestindo-se na moda pré-primeira-guerra, como os freudianos ortodoxos com suas barbas e divãs, ou os hippies ainda usando suas faixas na cabeça e sandálias dos anos sessenta. Entre nós junguianos esse erro de identificar o inconsciente com seus campos aparece nas preocupações com o mal, com mandalas pintadas, ou com insultar ou revificar o Cristianismo. Demonstrar a tipologia com evidências estatísticas, usar imaginação ativa como uma técnica com guias espirituais, revestir a cultura com o 'feminino,' com a sombra ou Mercúrio — esses encargos dos herdeiros de Jung com os quais, ao menos, eles não o trocam por Kohut, Klein, Grof ou Lacan — são tentativas de seguir o mestre que não seguem o mestre. Em vez, eles fazem ego onde havia id. Eles seguem Freud, a abordagem modernista, positivista e psicodinâmica, ampliando o âmbito do conhecimento ao incrementarem a ambição da razão conceitual. Didática. Seguidores podem ser razoáveis e aceitáveis; Jung só podia ser escandaloso e radical.
Digo tudo isso tão diretamente, com ironia retórica, porque temos apenas vinte e cinco minutos, tempo para um sermão, uma argumentação persuasiva que balance e deixe uma impressão emocional. Meu estilo almeja o próprio discurso de heresia que estou propondo. Voei o oceano, cruzei os Alpes para dizer isso.

E o que estou propondo como herança tem que ser afirmado num jeito negativo e irônico; a opus contra o familiar e natural. O radicalmente renovador não vai com a maré, mesmo quando aparentemente o tópico é um evento contemporâneo. Em 1936 Jung escreveu seu ensaio sobre Wotan. Muito significativo que ele tenha se pronunciado sobre a Alemanha e o Nacional Socialismo. Extraordinária foi sua percepção de que o mito estava ativo ali no meio da política, como esteve em Atenas, Roma e na Europa de Joana d'Arc e Cola di Rienzi. Os poderes arquetípicos não se mostram apenas nos livros simbólicos, nas religiões exóticas e nos consultórios. Eles se apoderam das ruas, da mídia, do campo de guerra. Ou, ainda como um outro exemplo: quando em 1950 a Igreja proclamou a doutrina da Assunção de Maria e a teologia de Jung parecia reconhecida por aquela retificação da trindade como o quarto feminino, sua teologia era radical, não porque era atemporal e profética, não porque o conteúdo supria um background teológico para o feminismo; era radical porque Jung arriscava-se numa teologia psicológica contra a reificação da Igreja de Pedro, contra noções ridículas de salvação através de um Jesus inofensivo.
E, quando a isso seguiu-se o escandaloso livro sobre Jó, lá estava mais uma vez a heresia — não meramente em função da teologia literal em suas proposições sobre uma figura de Deus inadequada e inconsciente precisando tornar-se humana; o homem como o salvador de Deus. Não; o escândalo mais verdadeiro estava na iconoclastia, o desfacelamento da tão querida e inviolável imagem de Deus ocidental. Jung havia deslocado o maior de todos os grandes temas. Novamente, o jeito de trabalhar, não o trabalho; o distúrbio, não a nova doutrina; o agon romântico de Jó e Jung, não o solidificado troféu que coroa a luta. É esse Jung biográfico, Jung do falo monstruoso e da igreja defecada que dá aquela carga paternal vitalizante à imagem de Jung na psique contemporânea.

Se não mantivermos a imago de Jung dessa maneira, Jung como um terrorista psicológico, um pós-moderno sempre deslocando o esperado, tremendo as bases, sua imagem esmaece num retrato da senilidade sábia, um membro do clube da história sentado em sua poltrona, mais um rei de cabelos brancos nas torres da cultura européia; e esquecemos das figuras heréticas e apaixonadas entre as quais ele está e por quem ele foi fascinado: Abelardo, Paracelso, Freud, von der Flue, os gnósticos e os alquimistas, Nietszche.

Portanto estou tentando nos afastar da noção de que a herança cultural de Jung está literalmente nos campos que ele abriu, e assim retornei a tais tópicos tediosos como experimentos de associação convencionais e sua tese acadêmica para salientar o estranho dom de Jung e seu legado à cultura: seu "deslocar o usual."
Deslocar o tema usual — este é o escândalo, a heresia; e é aí que Jung — arcaísta, patriarca, arqui-conservador — é radical no real sentido da palavra. Radical porque vai de volta aos radices, as raízes, os archai. Esses archai revertem adaptações híbridas e convenções coletivas a algo mais velho, profundo e mais essencial. Essas raízes não se conformam. As raízes protestam contra acomodações. As raízes atravessam qualquer camada de enxerto, qualquer expectativa, insistindo em torcer o seu jeito pelos caminhos abertos para elas. Para estarem certas têm que desviar. Eu uso a metáfora das "raízes;" Jung falou do "inconsciente arquetípico." E era, como ainda é, chegar às raízes do sofrimento, do sofrimento inconsciente, do sofrimento do inconsciente, das raízes, a preocupação da terapia radical.

Onde está o inconsciente hoje? Onde sofrem as raízes? Onde estão enterradas as faíscas de Sofia na escuridão de nosso mundo presente? Dar atenção a elas é a terapia junguiana da cultura.
O inconsciente hoje reside não apenas nos pacientes burgueses que estão, eles mesmos, tão frequentemente engajados na mesma profissão terapêutica, não apenas nos sonhos e nos relacionamentos, e dificilmente nas insignificantes e tramadas agonias da transferência, o bovarismo de Flaubert agora reescrito como a psicodinâmica do narcisismo. Sofia sofre hoje em nossas cidades, em nossa tecnologia, em nossas instituições e nossa política paranóica, essas furiosas superestruturas egoístas que perderam suas raízes elementais nos archai; e Sofia sofre nos padrões de produção, distribuição, consumo e lixo, nas coisas comuns do dia-a-dia que nos cercam neuroticamente chamando nossa atenção, com suas formas desmoralizadas, falsas personas e sua tendência para o colapso. O daimônico vive menos em nossos sonhos e mais em nossos dias, nossa inércia moral e exaustão anestesiada. O inconsciente se rebela em nosso mundo maníaco, não na sincronicidade, na sexualidade, nas deusas, na primeira infância e no transcendentalismo trivial. O inconsciente está onde sempre está, nas bordas da consciência, entrelaçado à consciência, onde não olhamos ou não queremos ver. Está no meio de nós. Estamos imersos na psique. Como insistiram os alquimistas, o ouro da possibilidade está no lixo horrendo mais próximo de nós.

A tarefa de trabalharmos a materia prima do inconsciente real sempre foi aquela do artista que não expressa meramente seu sofrimento, mas que reflete o tormento da anima mundi, o sofrimento das raízes. Por artista quero dizer o artesão, quer seja, artista, alquimista ou analista — aquele que toma nas mãos a madeira abandonada, os sons cacofônicos, os pedaços de bricolage e retorna essa insconsciência a suas raízes. O artesão trabalha através da anima rumo à anima mundi.
E assim, para concluir, a abordagem herética de Jung precisa ser renomeada. Afinal, ela assim foi chamada por um pastor dentro do contexto religioso de um funeral. Mas aquilo a que o pastor se referiu não é nada mais do que a visão das artes desde Giotto, Dante e Vitruvius; aquela visão daimônica que desloca o usual ao revertê-lo a seu archai. O mesmíssimo ato que esfacela o ícone familiar anuncia sua importância daimônica, elevando a imagem ao lugar primeiro.

Se a visão de Jung é semelhante àquela do artesão e sua vida conforma-se ao dever e destino do artista — apesar dos protestos de Jung, apesar de suas atitudes anti-estéticas, apesar de seu imenso e continuado compromisso com a religião — ainda assim este é o legado que ele deixa à cultura e é também sua terapia. Se sua visão é comparável com a do artista, então o trabalho da terapia também deve ser concebido ou imaginado como um empreendimento artístico, a reversão da medicina para sua arte, assim como a política para sua arte, o planejamento das cidades, o serviço social, a indústria, a educação — cada um como um trabalho com as raízes que sofrem. Cada um como uma tentativa de fazer alma a partir da inconsciência. Cada um uma tentativa de individuação do coletivamente dado. Cada ato da luta diária levemente em conflito com a luta diária, deslocando o usual, libertando a imagem cativa e aliviando o sofrimento de Sofia na matéria. Cada movimento sempre radical, subversivo, particularmente subversivo às noções confortáveis da psicoterapia usual, psicoterapia como usual, e sempre uma raiva contra a cega harmonia de uma vida anestesiada. Em vez, uma vida em meio ao notável, ao estranho, ao patologizado; os machucados e descontentes, em paz somente num mar revolto.

Este ensaio foi pela primeira vez apresentado em Milão na Conferência "Presente e Herança Cultural" que comemorava o 25° aniversário da morte de C. G. Jung, no Centro Italiano di Psicologia Analitica, em 1987. Está publicado na revista SPHINX 1/1988, Londres, Inglaterra. Tradução de Gustavo Barcellos


quinta-feira, 11 de agosto de 2016

O NuPArq retoma seus trabalhos nesse dia 12/08

O Lamento dos Mortos - James Hillman e Sonu Shamdasani (Editora Vozes)
Quinta e Sexta Conversas

"Loucura é  falta de trabalho"...pag 122


"...a grande descoberta nas profundezas foi a imaginação...Vcê está  em busca de uma alma, e sua alma é imaginação"... pag 120

"...porque então Jung não disse "Eu conheço Deus", ele estava dizendo "Eu conheço minhas experiências". pag133




sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Introdução

James Hillman desfaz. Você adentra seus escritos e uma conversa ou uma discussão vai ocorrer, seja com ele, seja consigo mesmo, seja com um bem talhado sistema de crenças. Teorias prediletas serão viradas de cabeça para baixo, ou serão defendidas com unhas e dentes. Leitores passivos, cuidado: esta obra envolve. Embora sua abordagem não seja sistemática - ele não constrói modelos mentais - suas reflexões são focadas e precisas, iluminando acuradamente qualquer que seja o terreno a atravessar - da patologia à política, da natureza à nutrição, da antiguidade ao Armagedon. Ainda assim, sua preocupação é sempre mais vertical que horizontal. Hillman levanta pedras e revela as estranhas criaturas ali embaixo. Ele localiza as fissuras da estreiteza de pensamentos e preenche seus espaços cegos. Desvelando a sabedoria convencional e os entendimentos codificados, ele abre espaço para novas formas de sermos psicológicos. O desfazer sempre se torna uma abertura. O resultado é uma perspectiva diferente, aquela que aprofunda antes de explicar. O objetivo persistente: devolver psique (alma) à psicologia.

Glen Slater
"Introdução" a James Hillman, Senex and Puer, Uniform Edition

terça-feira, 26 de julho de 2016

...  ( complete esse texto com seu título )


Esses últimos dias estou com uma palavra a perambular acusticamente em mim: “void”. Num primeiro momento creditei essa palavra ao término do livro “beleza e tristeza” do Kawabata que me deixou com uma lacuna, mas que com satisfação “preenchi” para finalizar a narrativa; depois, por conta de um documentário que assisti sobre cineastas japoneses em que a lápide de Ozu não continha nome, datas, somente o ideograma chinês antigo “Mu” que significa “void”, como último desejo do cineasta, que como tal não apreciava narrativas rebuscadas e sim trabalhava o espaço e o cotidiano - “void” de novo; por fim, um TCC que corrigi de uma aluna de artes plásticas, no qual ela fazia um percurso de suas próprias obras e uma delas, que foi baseada em sentimentos opostos, tendo um espaço proposital representado na obra o qual ela nomeou como “vazio”. Não me contentei. As imagens acústicas dessa palavra ecoavam na minha mente, escritas nos lugares, nas pessoas... Ok – disse a mim mesma – Fomos (eu e minha caravana interna) ao dicionário de etimologia, quero saber a raiz, o profundo, o abaixo da terra. Descobri que a palavra “void” vem de “voide” do francês arcaico que se origina do latim “vocitus” (“tornando vazia) que também deriva a palavra “vuoto” (italiano “vácuo”). A palavra “vazio” vem do latim “vacivu” que significa vago. Não me contentei novamente. Li então cada significado da palavra “void”, “vide” e “vazio”, até que encontrei o que estava procurando, um dos múltiplos significados da palavra francesa “vide”: “qui offre des lacunes”. E agora?  Ouvi a voz da minha querida professora de linguística que uma vez disse: “é mais fácil aparar arestas que preencher lacunas”, no caso referindo-se a minha escrita, desde então aprendi a preencher lacunas, como fiz no romance do Kawabata, mas oferecer lacunas?  Imaginei um espaço para uma infinidade (com perdão do pleonasmo) de possibilidades para preencher ou não, transformar  (imagino feito com as mãos em massinha ou argila) ou ainda segurar a angústia do “vazio”. Com esse texto, ofereço lacunas, servidas de preferência com um pinot noir, um vinho poético. 

Por: ReBeKa S.