SS: Dentro da sua perspectiva hoje, o que te surpreende neste livro?
JH: O livro, de alguma forma, validou o que eu sentia que estava
fazendo todos esses anos sem saber. O que eu quero dizer é que a minha própria
terapia e minha terapia com outros, sempre que possível, focalizava uma
imaginação ativa, diálogos, encontros com figuras, e ensinava e aprendia como
lidar com essas figuras. Então, personificações me pareciam absolutamente uma
atividade essencial da psique, tal como Jung disse ou demonstrou em seu Livro Vermelho. E o que mais? Ele dizia
que a psique é imagem ou que a imagem é psique – eu nunca me lembro qual é
qual, qual substantivo vem primeiro – e eu usei isso o tempo todo[1].
Ele disse em algum lugar: “fique com a imagem”[2].
Ele disse: “sonhe o mito e vá em frente”[3].
Essas são todas chaves de como fazer psicologia e como fazer psicoterapia. Ele
não usou abstrações no Livro Vermelho.
Eu tentei me livrar de várias abstrações, tais como o inconsciente, ou o ego,
ou o eixo ego-self – até mesmo a palavra “self” – e restaurar o peso da
história humana, como a mitologia, a mitologia Grega em particular, mas também
figuras bíblicas ou míticas, figuras de contos de fadas. Eu usei os mesmos
tipos de textos aos quais Jung se refere, não tão gnósticos, mas filosofia
antiga. Então, muitas dessas coisas que eu estava fazendo, e tentando escrever
sobre, estavam lá no que Jung estava fazendo no Livro Vermelho. Eu estava engajado com o Cristianismo o tempo todo
e disse que tanto Freud como Jung tinham concordado com o termo de inconsciente
profundo, o qual era o peso da história cristã ou a psique. No livro “O Sonho e
o Mundo das Trevas”, eu tenho um capítulo sobre isso[4]
e, também no Entre vistas[5].
E, em todo o livro “Revendo a Psicologia”, eu estou tentando trabalhar
sobre os preconceitos cristãos. Pareceu-me que, sem saber, eu estava fazendo um
trabalho paralelo, em minhas próprias restrições e caminhos limitados, com o
que Jung estava lidando no Livro Vermelho.
SS: Então, esse foi o legado que você assumiu e, sem saber, era esse
o caso?
JH: Mas eu não sabia que era o legado. Eu não sabia que isso era tão
evidente no Livro Vermelho.
SS: Ou, necessariamente, que as questões que você assumiu pra você
mesmo foram questões onde Jung parou.
JH: Exatamente. E eu me vi criticando um pouco da linguagem básica
de Jung, particularmente sua teoria de opostos, apresentando constantemente
contrastes em termos de opostos. E eu achei que isso era um modo desnecessário
de diferenciação, um modo retórico. É necessário para a retórica fazer um
contraste muito preciso, mas não deve ser tomado literalmente. Eu não quero
elaborar tudo isso; esta é uma coisa grande para ser elaborada. Mas eu acabei
assumindo esta posição por anos. Há mais, há muito mais. Tem a ver com a
realidade da imagem. Quando falamos sobre a psique, temos que ver o que é
apresentado fenomenologicamente, ou fenomenalmente: as próprias imagens, e elas
têm em si todas as coisas de que você precisa. E nós não estamos tão
preocupados com o processo de individuação, que é uma fantasia desenvolvimentista,
mas, ao contrário, cada coisa se apresenta da forma como ela mesma se
apresenta, e já tem nela tudo de que você precisa desde que você fique com
isso, trabalhe e expanda isso. Esta é uma linguagem metafórica. Além disso, a
psique fala em metáforas, em analogias, em imagens, e esta é sua linguagem
primária, então porque falar de forma diferente? Nós precisamos escrever de
forma que evoque a base poética da mente com a retórica que não desilude a
psique de seu jeito natural de falar, e que requer uma sensibilidade com as
palavras de forma que elas tragam sentido, que insinuem, que sugiram; isto é
uma sensibilidade de linguagem. Este é um resultado direto de pensar não
conceitualmente.
SS: Há um episódio surpreendente no trabalho quando a alma da
serpente fala com o “eu” de Jung, dizendo: “Eu te dou o pagamento em imagens[6].”
JH: Pagamento? Quer dizer riquezas?
SS: Riquezas. Meu presente é em forma de imagens. Se você olhar para
a prática de Jung com imagens, ele geralmente pede à sua alma, ou a Filemon,
que explique a ele o que está acontecendo; e até mesmo a tentativa de
explicação está contida na própria imagem.
JH: As imagens se auto explicam.
[1] Jung, “Comentários sobre o Segredo da Flor de Ouro” (1929), CW 13, par. 75.
[2] Jung, “A Utilidade Prática da Análise de Sonhos” (1931), CW 16, par. 320.
[3] Jung, “Sobre a Psicologia do Arquétipo da Criança”, (1940), CW 9, I, par. 271.
[4] Hillman, O Sonho e o Mundo
das Trevas (p. 68f).
[5] James Hillman, Entre-Vistas:
Conversações com Laura Pouso sobre Psicoterapia, Biografia, Amor, Alma, Sonhos,
Trabalho, Imaginação e os Estados da Cultura (NY: Harper and Row, 1983) (p.
75f).
[6] O Livro Vermelho, p.323.