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No começo do ano, o escritor e psicólogo Gustavo Barcellos fez uma imersão de cinco dias com um grupo de amigos em um sítio em São Francisco Xavier, no interior de São Paulo, para preparar o derradeiro capítulo do livro O Banquete da Psique, lançado nesta quarta-feira, 16, pela Editora Vozes.
Em torno de um fogão à lenha e embalados por bons vinhos, os convidados (nenhum deles cozinheiro profissional) falaram sobre lembranças de sabores, cheiros e texturas que evocavam suas memórias afetivas.
Produziram então uma sopa rústica de mandioquinha, que foi servida com pecorino ralado na hora e torradas, bacalhau de nata, ragu de carne, arroz do sertão com charque e paio e bolo de carne. De sobremesa, bolo de cenoura com chocolate e mingau de tapioca.As receitas serviram de “ilustração” para o conceito tratado nas 165 páginas da obra: a psicologia da alimentação. Mestre em Psicologia Clínica pela New School for Social Research de Nova York, membro da Associação Internacional de Psicologia Analítica e fundador dos Cadernos Junguianos, Barcellos buscou, segundo ele, preencher um buraco na literatura sobre o tema.
Em vez de tratar dos transtornos de alimentação e das patologias causadas pela ansiedade dos comedores compulsivos, ele foi no caminho oposto. “Se retirarmos os transtornos alimentares, a literatura sobre psicologia e gastronomia é praticamente nula. Procurei preencher esse vazio. O livro é um trabalho sobre a imaginação da comida”, disse o autor.
Segundo Barcellos, o livro é também um “ato de resistência” contra a perda gradual do ritual da alimentação compartilhada na cada vez mais apressada sociedade moderna, que se contenta em comer com uma mão em 20 minutos, enquanto a outra é usada para dar prosseguimento ao trabalho.
O Banquete da Psique advoga a tese de que o declínio da refeição caseira e a aceleração do ato de comer no cotidiano de casa, trabalho e nas ruas, bem como o advento da comida rápida (do tipo lanche de micro-ondas) levou ao declínio do rito da refeição.
É na refeição compartilhada que as crianças aprendem a arte da conversação e adquirem os hábitos que caracterizam a civilização: repartir, ouvir, ceder, administrar as diferenças. Comer é, enfim, um ato cultural e simbólico.
“Alimentar-se não pode ser um ato solitário. Se for, é apenas nutricional. Comer, do ponto de vista da alma, é também um ato emocional. Se a gente perde o momento da refeição compartilhada, perde-se, do ponto de vista psicológico, o aspecto ritual da alimentação. Com a extinção desse hábito, perde-se também o aprendizado da convivência e do compartilhamento”, disse Barcellos.
Entre os exemplos de comidas “memorialistas” e que “aconchegam” e nutrem além do nível físico, o livro aborda como comidas da alma (soul food) os purês, pirões, polentas, mingaus e compotas que estão ligadas às raízes e tradições familiares e regionais.
São comidas carregadas de lembranças felizes, como um breve recesso ao lar da infância. Essa comida caseira acrescida de toques de sofisticação ganhou de alguns chefs, em um impulso revisionista, o nome de “comfort food”.
Um capítulo à parte do livro trata do “erotismo” dos alimentos doces. “A alimentação doce tem uma carga simbólica e de fantasia mais explícita e mais forte. Provoca mais fantasias, desejos, repulsa, impulsos. Tem uma carga emocional mais forte”, disse Barcellos.
Em seu livro, ele trata o doce como um alimento passional, e a sobremesa como o momento mais delicado e luxuriante. “A nutrição doce é lúdica, explora e excita a criança arquetípica.”
A lição que fica ao final do livro é que existem mais coisa entre o garfo e a boca do que pode imaginar a nossa vã filosofia.