quarta-feira, 27 de abril de 2016

O Lamento dos Mortos, A Psicologia depois de O Livro Vermelho - trechos da 4a. Conversa entre Sonu e Hillman

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SS: Dentro da sua perspectiva hoje, o que te surpreende neste livro?
JH: O livro, de alguma forma, validou o que eu sentia que estava fazendo todos esses anos sem saber. O que eu quero dizer é que a minha própria terapia e minha terapia com outros, sempre que possível, focalizava uma imaginação ativa, diálogos, encontros com figuras, e ensinava e aprendia como lidar com essas figuras. Então, personificações me pareciam absolutamente uma atividade essencial da psique, tal como Jung disse ou demonstrou em seu Livro Vermelho. E o que mais? Ele dizia que a psique é imagem ou que a imagem é psique – eu nunca me lembro qual é qual, qual substantivo vem primeiro – e eu usei isso o tempo todo[1]. Ele disse em algum lugar: “fique com a imagem”[2]. Ele disse: “sonhe o mito e vá em frente”[3]. Essas são todas chaves de como fazer psicologia e como fazer psicoterapia. Ele não usou abstrações no Livro Vermelho. Eu tentei me livrar de várias abstrações, tais como o inconsciente, ou o ego, ou o eixo ego-self – até mesmo a palavra “self” – e restaurar o peso da história humana, como a mitologia, a mitologia Grega em particular, mas também figuras bíblicas ou míticas, figuras de contos de fadas. Eu usei os mesmos tipos de textos aos quais Jung se refere, não tão gnósticos, mas filosofia antiga. Então, muitas dessas coisas que eu estava fazendo, e tentando escrever sobre, estavam lá no que Jung estava fazendo no Livro Vermelho. Eu estava engajado com o Cristianismo o tempo todo e disse que tanto Freud como Jung tinham concordado com o termo de inconsciente profundo, o qual era o peso da história cristã ou a psique. No livro “O Sonho e o Mundo das Trevas”, eu tenho um capítulo sobre isso[4] e, também no Entre vistas[5]. E, em todo o livro “Revendo a Psicologia”, eu estou tentando trabalhar sobre os preconceitos cristãos. Pareceu-me que, sem saber, eu estava fazendo um trabalho paralelo, em minhas próprias restrições e caminhos limitados, com o que Jung estava lidando no Livro Vermelho.
SS: Então, esse foi o legado que você assumiu e, sem saber, era esse o caso?
JH: Mas eu não sabia que era o legado. Eu não sabia que isso era tão evidente no Livro Vermelho.
SS: Ou, necessariamente, que as questões que você assumiu pra você mesmo foram questões onde Jung parou.
JH: Exatamente. E eu me vi criticando um pouco da linguagem básica de Jung, particularmente sua teoria de opostos, apresentando constantemente contrastes em termos de opostos. E eu achei que isso era um modo desnecessário de diferenciação, um modo retórico. É necessário para a retórica fazer um contraste muito preciso, mas não deve ser tomado literalmente. Eu não quero elaborar tudo isso; esta é uma coisa grande para ser elaborada. Mas eu acabei assumindo esta posição por anos. Há mais, há muito mais. Tem a ver com a realidade da imagem. Quando falamos sobre a psique, temos que ver o que é apresentado fenomenologicamente, ou fenomenalmente: as próprias imagens, e elas têm em si todas as coisas de que você precisa. E nós não estamos tão preocupados com o processo de individuação, que é uma fantasia desenvolvimentista, mas, ao contrário, cada coisa se apresenta da forma como ela mesma se apresenta, e já tem nela tudo de que você precisa desde que você fique com isso, trabalhe e expanda isso. Esta é uma linguagem metafórica. Além disso, a psique fala em metáforas, em analogias, em imagens, e esta é sua linguagem primária, então porque falar de forma diferente? Nós precisamos escrever de forma que evoque a base poética da mente com a retórica que não desilude a psique de seu jeito natural de falar, e que requer uma sensibilidade com as palavras de forma que elas tragam sentido, que insinuem, que sugiram; isto é uma sensibilidade de linguagem. Este é um resultado direto de pensar não conceitualmente.
SS: Há um episódio surpreendente no trabalho quando a alma da serpente fala com o “eu” de Jung, dizendo: “Eu te dou o pagamento em imagens[6].”
JH: Pagamento? Quer dizer riquezas?
SS: Riquezas. Meu presente é em forma de imagens. Se você olhar para a prática de Jung com imagens, ele geralmente pede à sua alma, ou a Filemon, que explique a ele o que está acontecendo; e até mesmo a tentativa de explicação está contida na própria imagem.
JH: As imagens se auto explicam.



[1] Jung, “Comentários sobre o Segredo da Flor de Ouro” (1929), CW 13, par. 75.
[2] Jung, “A Utilidade Prática da Análise de Sonhos” (1931), CW 16, par. 320.
[3] Jung, “Sobre a Psicologia do Arquétipo da Criança”, (1940), CW 9, I, par. 271.
[4] Hillman, O Sonho e o Mundo das Trevas (p. 68f).
[5] James Hillman, Entre-Vistas: Conversações com Laura Pouso sobre Psicoterapia, Biografia, Amor, Alma, Sonhos, Trabalho, Imaginação e os Estados da Cultura (NY: Harper and Row, 1983) (p. 75f).
[6] O Livro Vermelho, p.323.   

terça-feira, 5 de abril de 2016

A Base Poética da Mente


Parte do prefácio de Thomas Moore sobre os escritos de Hillman no livro
“A Blue Fire”


          A psicologia arquetípica não é uma psicologia de arquétipos. Seu papel principal não é o de fazer associações entre temas da mitologia e da arte com temas da vida cotidiana. Mais do que isso, seu papel é o de ver cada fragmento da vida e cada sonho como mitologia e poesia. Um conselho municipal pediu a James Hillman que comentasse seu plano de construir um lago recreacional. Hillman compreendeu os anseios imediatos advindos desse plano; porém, ele levantou uma questão que vai além do seu sentido literal, percebendo a necessidade que a cidade tem de hidratar sua alma. O fato de não haver piscinas para diversão demonstra que a cidade tem a tendência de concretar qualquer fantasia que apareça. Há pouca margem para a fantasia, nenhuma fluidez de imaginação, poucos prazeres afrodíticos autênticos com relação à água. A alma deste lugar está sedenta. Ela precisa de águas mais profundas e mais sutis do que um lago pode proporcionar.

          Todo o trabalho de Hillman – teorizar, fazer análises culturais, clinicar – pressupõe o que ele chama de uma “base poética da mente”. Isto significa uma psicologia enraizada não na ciência, mas na estética e na imaginação. Ao ver tudo como poesia, Hillman liberta a consciência do invólucro duro e, ao mesmo tempo delgado, do literalismo, revelando a profundidade da experiência. A alma, segundo ele, transforma o evento em experiência. Mas é a imagem que é experimentada, não o literalismo. A cidade sente sua própria falta d’água e literalmente tenta construir um lago. Somente uma mente poética poderia penetrar esse literalismo e fazer um diagnóstico preciso. Essa visão poética constitui a psicologia defendida por Hillman.

          Este trabalho é chamado arquetípico, como adjetivo, porque ele busca as imagens nos eventos que proporcionam significado, valor e uma variada gama de experiências, esforçando-se para alcançar profundidade, ressonância e textura em tudo o que analisa. Para os filósofos gregos antigos, archai eram os elementos básicos dos quais a experiência é feita. A psicologia arquetípica utiliza a visão penetrante da imaginação para perceber esses archai, que são as fantasias fundamentais que acendem toda a vida. Arquetípico significa “fundamentalmente imaginal”.

          A principal maneira com que Hillman salva a alma é preservando suas manifestações, e uma dessas manifestações é o desejo de compreender a si mesma. A psique, segundo Hillman, pede por um logos, e este é o principal sentido da psicologia. Metapsicologia, ou teoria, para Hillman, não constitui a busca pelo significado em um lugar além do próprio imaginário da alma; este constitui apenas um dos caminhos da imaginação que servem à psicologia. Ele também é poesia. Conceitos e idéias psicanalíticas precisam serem ouvidas como expressões da imaginação e lidas como metáforas. E essa abordagem conduz a um processo terapêutico da própria psicologia, lembrando-a que ela não é uma ciência, uma filosofia moral ou uma disciplina espiritual. É, simplesmente, uma atividade imaginativa da alma.

           É anti-psicológico, portanto, reduzir imagens a conceitos. Quando afirmamos que cobras e cajados são símbolos fálicos, matamos as imagens. Quando chamamos todas as figuras dos sonhos femininos de animas, congelamos essas personalidades em uma abstração. Ao invés de forçar as imagens para dentro de conceitos fixos e confinadores, Hillman quer que nos deixemos levar pela força das imagens. Ao invés de interpretar um sonho, Hillman nos convida a deixar que ele nos interprete. Essa abordagem confere à imagem prioridade absoluta sobre as compreensões e aplicações do ego. A idéia de uma base poética da mente é radical, movendo a conciência do heróico para uma postura mais receptiva e maleável.

          Boa parte do trabalho de análise arquetípica tem como objetivo salvar e preservar as imagens. O analista fica atento à tendência do indivíduo ou da sociedade de honrar suas posições interpretativas enraizadas em detrimento das imagens, e de ter uma postura moralista contra as imagens quando elas parecem ir contra os valores padronizados e os sentimentos confortáveis.

          Uma vez que a imaginação é a atividade mais primária da alma, a psicologia precisa ser cuidadosa em sua metodologia com a linguagem. Hillman trata as palavras como seres, emissários, não como ferramentas ou funções. Ele censura o nominalismo em todas as suas formas – ou seja, a tendência de fazer com que as palavras signifiquem o que queremos que elas signifiquem. A psicologia profissional está cheia de palavras que há muito tempo perderam sua ressonância imagística e se tornaram categorias vazias na quais depositamos comportamentos e personalidades.

          Hillman chega a ponto de dizer que palavras são pessoas. Elas falam, nós ouvimos. As palavras têm integridade, suas próprias histórias e personalidades. A imaginação vislumbra a alma até mesmo por meio de nossas palavras. Portanto, ler Hillman já é um empreendimento psicológico e até terapêutico, já que ele retira a mente de suas convicções fixas por meio da evocação de suas fundações poéticas.

          Ver através do literal, passando pela imagem, significa vislumbrar a alma. Nesse sentido, a psicologia arquetípica é uma redundância. Toda psicologia baseada na estética é arquetípica. A psicologia pode conectar-se à alma quando a alma é percebida de maneira apropriada através da imagem. Portanto, pode haver mais psicologia nos campos da arte e da literatura do que na psicanálise.

          Em um ensaio sobre a psicologia da Renascença, Hillman tomou emprestada uma idéia de Marsílio Ficino, o Platonista do século XV, que trouxe uma inspiradora base filosófica para pintores e poetas da época. Ficino disse, segundo a interpretação de Hillman, que nós precisamos de uma educação que vá na direção contrária das nossas tendências ao naturalismo e ao literalismo. O trabalho de Hillman vai ao encontro dessa contra-re-educação, o que significa uma mudança perturbadora no olhar, que deixa de se voltar para o que parecia natural e se volta para o reino alternativo da imagem. O literalismo, em qualquer campo ou empreitada, é relutante em “largar o osso”. Portanto, Hillman se agarra à sua contra-re-educação em psicologia com obstinação e ardor, transformando em psicologia manipulações médicas voltadas à mente e aplicadas à psique, ao mesmo tempo em que ele define esta psicologia – arquetípica, imagística, estética e poética.

  
REFERENCIA BIBLIOGRAFICA:

Hillman, J “A Blue Fire”: Selected Writings by James Hillman
                  New York: 1989 HarperCollins Publishers


                        tradução de Renata Quirino Sousa