quarta-feira, 1 de julho de 2015

A Ciranda das deusas e a diferenciação do feminino

Ana Célia Rodrigues de Souza

28.06.2015


Gostaria de iniciar convidando-os a seguir comigo uma imagem, imagem simbólica e lúdica que remete à infância, aos primórdios.

Vamos começar imaginando um círculo, símbolo de totalidade, do cosmo, do feminino e do tempo – tempo da vida, do inconsciente, da criação.


              Em cada ponto dessa circunferência encontramos uma figura feminina, divindades em várias idades diferentes de mãos dadas.
              No centro da roda – como na dança circular, de muitos ritos femininos – vemos (1) Coré, o grão, a menina, a pureza inocente com um lenço na mão, lenço este, que faria o papel de fio de ligação, a linha da tecedura, convidando a próxima deusa a entrar no centro desse todo, a psique.
              As demais divindades que a circulam são: (2)Ártemis, (3)Atena, (4)Afrodite, (5)Hera, (6)Deméter, (7)Perséfone e (8)Hécate.


               Elas estão ali girando, dançando e cantando, enquanto Coré escolhe a próxima deusa para ocupar seu lugar.
              Pensando na individuação, poderia propor uma sequência lógica e linear para a participação de cada deusa (padrão arquetípico de comportamento, ou regência psíquica) na teia da vida dos humanos. Embora ciente de que de modo geral, os movimentos possam não ocorrer de tal modo linear, como é apenas uma fantasia, isto se torna possível!
              Coré, a criança dócil e virgem prepara-se escolhendo Ártemis (a deusa das fronteiras, das passagens) para entregar o lenço, e assim, ceder seu lugar para este outro funcionamento psíquico.
              Ártemis, como aquela que conhece, respeita e cultiva a própria natureza, sabe-se criatura forte e capaz da autonomia; que instrui as meninas – chamadas “ursinhas”, segundo o mito, pois, ursa é uma de suas expressões zoomórficas – para se tornarem independentes de suas mães e prepararem-se para a vida sexual adulta e fértil.
              Ártemis, por sua vez, passa o lenço para Atena, a filha nascida da cabeça do pai, a personificação da reflexão. Criatura sem mãe, guerreira, independente, pronta para auxiliar heróis e heroínas nas jornadas de discriminação dos lados sombrios da mãe (mito de Orestes que mata a mãe Clitemnestra; mito de Perseu que corta a cabeça de Medusa e Atena incrustra em seu escudo ou seu peito).
               Atena que tece, planeja estrategicamente seus passos, sua carreira, sua autonomia, até o momento em que entrega o lenço, de novo, para Ártemis, como passagem para outro campo arquetípico entrar em ação. Vemos essa transição, por exemplo, no mito de Atalanta, a devota de Ártemis que se entrega ao campo de Afrodite, a deusa do vínculo, do amor e da beleza; que após longa jornada aceita a condução da mortal Psiquê (a alma) ao Olimpo, como esposa de seu filho Eros, e fecundada pelo amor.
              Afrodite, então, passa o lenço para Hera – como quando empresta seu cinturão, ajudando a deusa a seduzir Zeus, em plena guerra de Tróia.
              Hera, a rainha do Olimpo, esposa legítima, passa o lenço para Deméter, a grande deusa mãe, que se submete ao masculino e se deixa engravidar. Apesar de suas vivências de violência com o masculino patriarcal, Deméter se reestrutura no local sagrado do Templo de Elêusis, onde consagra seu filho adotivo Triptólemo como aquele responsável por ensinar o cultivo do trigo ao mundo. Trigo que faz o pão, alimento universal, que une os homens, em comunhão.
              Deméter grávida, também pode simbolicamente ser vista como Perséfone grávida de Dioniso Zagreu em Elêusis, onde as deusas se reencontram, após o rapto de Coré.
              Perséfone, a rainha do mundo dos Ínferos, única monogâmica, em casamento eterno com Hades, seu raptor, o masculino inconsciente, que a fecunda por meio das sementes de romã, convidando-a a permanecer nesse movimento de introspecção, a entrada no inconsciente, tornando os processos reflexivos possíveis.
              Perséfone , após parir Dioniso, a deusa que se sabe, entra e sai dos Ínferos de tempos em tempos – versões variadas: meio ano em cada lugar, ou dois terços na superfície e um terço nos Ínferos – mantendo sua autonomia e respeitando as escolhas de seu companheiro Hades. Ambos estabelecem uma relação de alteridade no campo do amor, não disputam poder, decidem em comunhão, governam em parceria esse mundo das almas, respondendo aos seus visitantes de comum acordo.
              E para finalizar a brincadeira Perséfone passa o lenço para Hécate, a deusa velha sábia, moradora dos Ínferos, a expressão simbólica da mulher menopausada, desapegada, conhecedora dos mistérios da vida e da morte.
              Nessa ciranda, cada padrão arquetípico (deusa) tem seu momento para entrar no centro da roda e fazer a “escolha” da próxima situação a ser vivida. Mas esta “escolha” parece ser determinada não só pela participação dos demais deuses e heróis que se encontram ao redor, habitando o cosmo (a psique), como também pelos eventos externos e objetivos que vão se materializando, formando constelações, conglomerados, complexos.
              Quando uma deusa entra no centro da roda, carrega, leva consigo todos os seus pressupostos e mitemas correlatos, o que vai dificultando, muitas vezes, a tal linearidade referida anteriormente. Como numa rede de pesca tecida pelas Moiras (as deusas do destino), onde cada nó puxado afeta vários outros mais próximos.
              Por algum motivo, a deusa do centro pode perder a hora de passar o lenço para a companheira seguinte da roda, por exemplo: Atena segura o lenço até os cinquenta anos e foi-se a possibilidade de gestar e parir fisiologicamente sua prole! Isto, pensando em Atena como campo arquetípico regente da psique de uma humana.
              O padrão Deméter pode se constelar numa mulher que não consegue simbolicamente instituir o Templo de Elêusis e ao não reencontrar Perséfone mãe de Dioniso, ficar aprisionada na depressão do “ninho vazio”.
               O padrão Ártemis pode trair-se como deusa de passagem, nas várias etapas da vida, e não entregar o lenço à Afrodite, por exemplo, tornando a mulher regida pelo campo artemisiano, uma solteira, sem amantes ou filhos naturais.
              Enfim, sem a intenção de nenhum julgamento moral e confiando na sabedoria de James Hillman – que nos aconselha a acender velas, libar e orar para todos os deuses – penso que todos os padrões de comportamento arquetípicos do feminino estão aí, podendo ser desfrutados. E, sendo da natureza da mulher, o feminino, sua psique se completa, ou se torna mais inteira, total, quanto mais puder ser mais flexível, dinâmica e múltipla, possibilitando a essa mulher uma criatividade diferenciada pelas próprias variadas vivências de corpo e alma.


Um comentário:

Sylvia disse...

Ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar! Nesse texto leve e lúdico, encontramos muito estudo e saber na forma de uma divertida dança. Sempre aprendo com Ana Célia!